4.2.07

_ Repentino.


Meus contos andam vindo aos poucos... a idéia chega, um pedaço da história se revela na esquina, depois do jantar, durante uma aula... Esse não. Chegou forte, clamando por ser escrito. Entregou-se por inteiro para mim e eu o aceitei com todo coração.


_ Eu não posso fugir de mim mesma. Ninguém pode.


A página arrancada.
Pt.1

23 de Setembro de 2001.


Estou há cinco minutos olhando para a página em branco. Tenho medo dela. Quase chego a esquecer que é só um pedaço de papel e o temor que sinto é de mim mesma. Das coisas que escreverei nela, das confissões que estou me obrigando a fazer. Acreditar é difícil, machuca. Faz apenas algumas horas que tudo se passou, mas agora quase não sinto a dor. É como estar insensível a uma ferida aberta no meio do peito. Porém, apesar de anestesiada... está aqui. Eu não posso fugir de mim mesma. Ninguém pode.
Meu dia foi normal. Nada de novo. Nada mudou. O trabalho é rotineiro, já sei fazê-lo de olhos fechados. O cobrador do ônibus e o motorista continuam os mesmos. A meia dúzia de pessoas que sempre o pegam estava lá. A blusa de quinta feira da mulher de olheiras fundas e costas curvadas também estava presente. Não sei o motivo, morro de uma curiosidade intrometida de saber por que ela sempre veste aquela blusa listrada às quintas feiras. Não é um uniforme, já a vi com um cinzento. Talvez ela nem tenha percebido. E definitivamente não é da minha conta. O mercado continua lá, o açougueiro sempre reclamando da artrite, a senhora gorducha que pesa os legumes sempre elogia as abobrinhas que eu escolho. O cachorro da vizinha late todos os dias para o marido, mas nunca para o amante. Será que ela o treinou? Eu também não mudei por fora. Meus cabelos conservam-se do mesmo castanho perene, nunca os tingi. Mas mudei por dentro. Não queria ter mudado, nunca. Queria estar sempre no mercado escolhendo minhas abobrinhas, ouvir o latido do cachorro da vizinha, tudo podia continuar do mesmo jeito e eu seria feliz, também do meu jeito. Queria a mesmice de todos os dias se repetindo, repetindo... nunca ficaria cansada. Queria sentir sempre as mesmas coisas boas e terríveis, já aprendi a conviver com elas. Mas não sei conviver com isso, não quero aprender. Queria nunca ter sido perturbada às oito horas dessa noite.
Estava na cozinha, terminando de cozinhar meu jantar. Seria uma noite como todas as outras, solitária, mas agradável. O interfone tocou. Não esperava visitas, elas são raras. A voz áspera do porteiro anunciou:
_Seu Alberto, pode subir, dona?
_Pode sim.
Corri para o banheiro, passar uma escova nos cabelos. Senti meu coração bater mais forte e ai, como sou tola, pensei que era uma surpresa muito agradável! Explodi, a minha maneira, de felicidade, que queria Alberto a aquele horário? Não importava, sua visita era sempre uma alegria a mais para meus dias monótonos. Não que eu reclame da monotonia, hoje eu posso dizer que a adoro. A campainha tocou, eu já grudada à porta. Abri e nunca o achei tão mudado. Seu semblante estava iluminado, sorria muito, mexia-se animado. Abraçou-me forte, como sempre fazia. Eu simplesmente o achei mais lindo do que nunca. Que acontecia com Alberto?


Continua....


Ao som de Depeche Mode - Somebody