27.4.08

_ Ele era a personificação agora bizarramente manca dos meus demônios mais perversos...

Gostei muito do resultado desse conto. Ficou com a velocidade que eu queria, a intensidade.... Espero que gostem e não vou me estender em comentários. Mas esse eu preciso fazer:

"Quem inventou o inferno não conhecia a consciência"


Reencontro


Caminhava com certa dificuldade, desviando das pessoas apressadas como eu e de seus guarda-chuvas ameaçadores, um quase havia feito um estrago no meu olho direito na esquina que tinha acabado de virar. Meu passo era rápido, pois infelizmente, não tinha uma arma daquelas para me proteger, meu cabelo recebia diretamente as gotas minúsculas de chuva daquele dezembro úmido. E como não podia ser diferente, corria também contra o tempo, sempre atrasada. Porém, minha mente seguia um ritmo diferente, tentando controlar a ansiedade do encontro ao qual me dirigia e meus olhos tentavam registrar as mudanças sutis daquelas calçadas. Ainda me incomodava o fato de ter me esquecido o caminho que aquele ônibus tão familiar fazia! Pois eu tenho um medo tolo de esquecer esses detalhes cotidianos, tão importantes para mim, como se, se eu os esquecesse, estivesse esquecendo também do meu passado que, por mais cruel que seja, é minha vida, parte de mim... em minha mente perturbada, esquecer do passado é deixá-lo morrer e nessa morte simbólica vai um pouco de mim também. Lembrar das coisas é mantê-las vivas, acho eu. Ironicamente mais tarde, essa mesma mente perturbada experimentaria a sensação contraditória de querer deixar certos detalhes do passado morrerem e não participarem mais de mim. Porque, por mais que os erros ensinem, pois todo erro ensina e tolo daquele que não aprende, doem absurdamente. Ainda mais quando andam.
Quando finalmente alcancei a entrada do metrô, deslizei os dedos pelos meus cabelos salpicados de chuva, tentei arrumá-los, mas acredito que só piorei sua aparência. A fila para comprar bilhetes estava maior do que de costume, aliás, o subterrâneo parecia tão movimentado e cheio de vida quanto a superfície. Lembranças, lembranças... as paredes daquela estação estavam impregnadas delas! Quisera eu ter mais tempo para me encostar em algum canto e observar aquele lugar e as pessoas. Quantas vezes não fizera isso, sempre a espera? Mas naquele dia eu tinha pressa, muita pressa.
Peguei a fila, contornando algumas pessoas. Pelo canto dos olhos, reparei em alguém, com uma guitarra pendurada nos ombros, os cabelos de aspecto ralo encharcados, bem mais que os meus pude observar, todo trajado de preto. Esse alguém olhava constantemente em minha direção e me lembro claramente de olhar para trás para checar para quem aquele estranho olhava tão atentamente. Depois de um tempo, a fila sempre andando devagar, percebi que eu estava realmente sendo observada por ele. E depois que me atrevi a olhá-lo nos olhos, entendi por que. Afinal, ele não era um completo estranho. Definitivamente.
Então, as engrenagens de meu cérebro enferrujado pela chuva começaram a funcionar e como por vingança do que a pouco pensara dela, minha memória golpeou-me com sua costumeira eficácia e habilidade. Uns dois anos atrás, mais ou menos isso. O mesmo lugar, uma outra fila com outras pessoas, um outro dia que brilhava lá fora. Fazia calor, como me esquecer? Eu, ansiosa, esperava minha vez de comprar o bilhete. Quando um olhar cruzou com o meu. Os olhos eram os mesmo que eu evitava agora, fechando o casaco e me escondendo por trás do alto rapaz que estava na minha frente. Mas não o olhar. Naquele passado não tão distante, eram olhares curiosos que trocamos, de totais desconhecidos analisando um ao outro. Hoje, o dele era de incredulidade. O meu, devia ser de assombro, aos poucos sendo substituídos por lampejos muito claros de dor.
Ele comprou sua passagem e se virou ainda umas vezes pra me ver e eu sempre me escondendo. Mas quando tirei a nota amassada do bolso, recolhi meu bilhete e umas poucas moedas de troco que larguei apressadamente no fundo de minha mochila, percebi que minha curiosidade era maior que meu medo. Apertei o passo e o segui. Depois, a passos calmos, procurei a figura que mais parecia ter saído do inferno, do meu inferno pessoal, e logo o localizei. De relance, notei um quê de perturbação nos seus olhos verdes, aqueles malditos. Fora eu o motivo de toda aquela agitação ou ele sempre fora meio perturbado mesmo? Que eu sabia dele? Não muito, apenas aquilo que nossa breve conversa me permitia saber. Conservei uma distância segura, mas cuidei de tomar o mesmo vagão que ele. Entrei, sentei-me e ele ficou de pé. Porém, houve tempo de perceber que ele não andava mais como outrora. Estava mancando muito, algum problema grave na perna esquerda. E sem a mínima cerimônia, pus-me a observá-lo. Como tinha mudado! Quando nos conhecemos, ele era apenas um menino magrelo com um gosto musical duvidoso parecido com o meu. Ele gostava de Tchaikovsky. Dei um sorriso e olhei pra baixo, procurando algum lugar pra esconder meu rosto. Meu corpo. Minha alma inteira, pois eu tinha repulsa dela. Senti uma golfada de vergonha subir por minha garganta. Ele, ali na minha frente. Um fantasma de carne e osso que me olhava, com seus olhos verdes e com um toque de loucura, estralava os dedos, ansioso, e eu queria lhe gritar que o odiava muito! Seu nome marcado a ferro e fogo na minha memória, por que, cérebro maldito, simplesmente não nos deixava esquecer?! Por que eu simplesmente não podia esquecer seus traços, seus olhos que um dia me levaram ao crime, o que eu tinha feito? Ele era a personificação agora bizarramente manca dos meus demônios mais perversos, do meu erro imperdoável, era a culpa ambulante a me acusar, apontando seu dedo medúsico bem no meio dos meus olhos e...
Era só um jovem parado na minha frente, que insistia em me encarar, procurando um olhar de curiosidade e de reconhecimento. Queria falar comigo. Compartilhávamos desse desejo. Mas eu com certeza não o exteriorizei, apesar de por dentro estar em guerra, lágrimas e sangue espalhados desordenadamente em meu coração e mente, por fora era a paz e a arrogância em pessoa. Mesmo assim, o jovem agora com traços de velho, sentou-se ao meu lado. Respirei fundo e quis olhá-lo bem no fundo dos olhos, mas continuei na minha representação de não reconhecê-lo e de não estar sofrendo absurdamente. Lado a lado com meu pecado mortal. Podia ouvi-lo respirar. E de repente quis saber o que tinha acontecido com ele. Algum acidente de moto? Lembro-me bem de seu pai ter uma moto...
Acidente foi termos nossos caminhos cruzados naquela primeira vez, uma tarde com ar de inocente. Agora era apenas minha memória cruel jogando-me na cara que o passado nunca nos abandona. Que meu travesseiro nunca seria macio como antes. E sentada ali, observei a porta do vagão. E lembrei como começamos a conversar. Naquele fatídico dia, éramos três. Aliás, lembrar desse outro alguém me levou a uma lembrança mais profunda e ainda mais dolorosa, que tentei evitar, mas eu simplesmente não sabia perdoar. Ouvi aquela voz e aquelas palavras novamente, queimando meus ouvidos, destruindo meu coração, fadando-me a infelicidade. Meus olhos se encheram de lágrimas, palavras duras, tão duras! E infelizmente, absurdamente verdadeiras e eu daria tudo para ser ignorante e discordar delas! Discretamente observei suas mãos. Pálidas, magras, agitadas. Quis tocá-las e chamar-lhe pelo nome. Talvez elas se desfizessem, tornar-se-iam pó e eu acordaria no conforto da minha cama, era só um pesadelo! Pesadelo ou não, não havia resquício algum de força em meu corpo ou alma e permaneci estática, apenas esperando que ele rompesse o silêncio e me libertasse daquela alucinante tortura silenciosa de auto punição que eu me encontrava. Chegamos a uma estação e ele pulou do banco, saiu mancando, seu passo agora triste e doloroso...
Ah, caro amigo... não foi só você que mudou, não foi só você ficou mutilado desde do nosso último encontro! Pois, eu ando normalmente, mas minha alma, essa tem os passos mais pesados que os seus, a cadência mais mórbida que a sua, o caminho mais triste que o seu, pois esse lampejo de inquietude dos seus olhos habita os meus todos os condenados dias que tenho que viver!
Ele ainda olhou-me do alto da escada rolante, entre as tantas outras pessoas tão alheias a nossa dor. E dos meus lábios seu nome ainda escapou, sendo o último suspiro de uma alma amaldiçoada por seus pecados que andam entristecidos pelas ruas dessa cidade.

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Próximo Conto: a decidir.

Até.



6.4.08

_ Pro diabo com o silêncio quando tudo que se espera é uma palavra, uma reação!

O final desse conto "bonitinho". E termino com essa frase, que eu sei o quanto é verdadeira. Espero que gostem.

Fora de Estação.

Parte Final.


E a árvore a observava com muitos olhos amarelados. Enrubesceu, estava ficando velha mesmo ou apenas lutava para esconder qualquer coisa que pudesse fazê-la voltar atrás? Não era covarde, só não queria errar!

_ Você vai conseguir deitar a cabeça no travesseiro sabendo que deixou as coisas do jeito que estavam por medo de mandar tudo pro inferno e começar de novo?

_ Por que você acha que eu quero fazer isso? Talvez eu só queira continuar do jeito que estou, seguir os planos, talvez eu esteja feliz do jeito que estou! Aliás, por que você acha que eu menti?

_Olhe para você! Esta inquieta demais, seu sorriso tem uma tristeza, uma inquietação! Aposto que essas olheiras... você nem deve estar dormindo direito pensando nisso!

_ Já disse, é o estresse!

_ Você me perguntou se as flores têm perfume.

_ E daí? _ Ângela tremia, tentava ficar calma, pelo menos demonstrar que estava. E agora aquela pergunta estranha, onde ele estava tentando chegar?

_ Como eu poderia saber, se a única coisa que eu me lembro é do seu perfume? Do calor do seu abraço e de seus lábios tão doces? Droga, Ângela, eu fiz uma pergunta aquele dia e você mentiu porque estava com medo! Simplesmente não posso deixá-la fazer isso de novo! Antes era só uma coisa de adolescente, mas agora é pra valer! Você está com medo de decepcionar as pessoas? Poxa, danem-se elas! E você? Onde fica você essa historia toda, o que você sente realmente? E eu? Como fico, sabendo que você vai ser infeliz ao lado daquele cara? Não, eu respondo sua pergunta, você não sentiu um pingo de saudade dele e tampouco o ama! Era isso que você estava com tanto medo de descobrir?! Pois bem, está aí a verdade!

Olharam-se demoradamente, a respiração de Carlos um pouco alterada, a expressão gelada e pálida de Ângela. Ele esperava apenas uma reação de dela, um grito que fosse, um “vou fazer as coisas do meu jeito dessa vez!” ou um seco “cala a boca, você não faz idéia do que esta falando.”, um tapa, uma crise de choro, qualquer coisa! Menos aquele silêncio, aquela expressão de pedra. Justo eles, que debaixo de árvores como aquela, podiam passar horas em silêncio juntos, sendo felizes! Pro diabo com o silêncio quando tudo que se espera é uma palavra, uma reação!

O alarme do relógio, presente do noivo, tocou. Ângela desprendeu os olhos dos de Carlos, calçou os sapatos e saiu, sem dizer uma palavra, do carro. Carlos, indignado, seguiu-a, tentando manter-se calado, já havia falado demais. Toda aquela eloqüência a troco de nada, fizera papel de tolo e agora teria que encarar aquele homem de jeito sereno, mas tão vil a seus olhos! Para inferno ele e aquela risadinha amena sem energia! Atravessaram a rua, alcançando a calcada coberta de amarelo.

_ Carlos _ Ângela parou, olhando pra cima, onde o céu e a copa da árvore se confundiam, respirando fundo, buscando forças. _ Essas flores ainda têm perfume?

Ele, serenamente, a encarou. Começava a ventar, seus cabelos ganhavam movimento, estava tão linda! Esperando que a partir daquele momento o noivo dela não fosse pontual, puxou-a para perto, olhando no fundo de seus olhos, que demonstravam medo ainda, mas estavam banhados de uma cor que lembravam bastante a coragem. Ela então sorriu, querendo lhe dizer algo, mas sabia muito bem a agora do silêncio. E beijaram-se com a suavidade do perfume de uma flor amarela.

Fim.


E o próximo conto será ...


Reencontro.


Até!