18.3.12

Um conto febril, criado debaixo das frondosas árvores de Botucatu, em 2010.


O Monstro

O cotidiano me transtorna.

O médico e o monstro, sabe? O cara bonzinho, bem sucedido, admirado, responsável, etc e tal. Do outro lado da mesma moeda, o maldoso, cruel, sem escrúpulo, pavoroso. Meu azar é que não sou médica, logo, só resta em mim o monstro. Às vezes gostaria de ter um arco e flecha, uma bazuca... melhor, uma faquinha de pão. Tem coisa mais cruel que matar alguém com uma faca de pão? Mas logo esse monstro adormece, preguiçoso e entediado. Sim, meu monstro é tão fracassado que até tem preguiça de continuar com esse tipo de pensamento. Bem que o tédio, que na minha cabeça é um daqueles bonequinhos palitos que se desenha no canto do caderno na aula mais chata, usando um chapeuzinho azul, se esforça. Vai lá, bate na porta da oficina do diabo, são super amigos, encomenda um desses pensamentos estranhos e malvados e dá para o meu monstro processar. Daí, o perdedor me passa umas imagens e alguns impulsos violentos. Mas só. Fica só nisso, dia após dia.

E nem o médico me sobrou. Porque se eu o tivesse, mesmo que eu fosse um monstro maluco e endemoniado, as pessoas me respeitariam. Não me achariam uma louca desvairada, estressada, insuportável, mas sim, um clássico. Passariam tranquilamente por cima de minhas neuroses, ignorariam minhas alucinações. É assim mesmo, diriam, coisa de gênio. Mas eu, meu monstro preguiçoso e meu tédio esforçado, todos nós demos um baita de um azar.

Eu devia ter escolhido outra profissão. Sei lá, ter feito Moda, Letras, Engenharia Química ou até mesmo tentando ser médica. Mentira, eu não posso ver um sanguinho que já desmaio. Mas ainda sim, errei. E ninguém pode me culpar de não ter sido esforçada. Levei sempre os estudos a sério, fiz uma boa faculdade e sonhei com um bom emprego. Queria ganhar dinheiro, ser dona da minha própria vida e não das minhas próprias dívidas. Odeio meu trabalho. Paga mal, é longe e as pessoas são um saco. Toda e cada uma delas. Eu me encho de raiva toda hora que olho para uma pilha de papel em cima da minha mesa. Eu estudei que nem uma idiota para isso? Para na hora santificada do café eu ter que ouvir falar das exatas mesmas coisas e se desconfiar, na exata mesma ordem? Meu marido é um ogro, top 10 das reclamações femininas. Minha mulher engordou e meu time tá jogando mal, empatam nas masculinas. Ninguém é feliz com nada; se chove, quer que faça sol; se faz sol, quer que chova. E ninguém tira a bunda da cadeira para largar o marido ogro ou parar de ser fanático por futebol. E eu também não me movo para matá-los ou pular do décimo quinto andar. Somos todos um bando de amargurados se amargurando cada vez mais. O monstro então ronrona no meu peito, vira para o outro lado e dorme. Desejo rapidamente aquela bazuca, mas logo desaparece o impulso. Eu e o tédio com seu chapéu azul suspiramos, decepcionados.

O trânsito me irrita. Meu carro quebrou há quatro semanas, daí tenho que me enfiar, literalmente, num amontoado de gente estranha e sonolenta dentro de um ônibus logo de manhã. Uma hora a menos de sono, uma hora a mais de mau humor. Quando ia de carro, os quarenta minutos de avenidas engarrafadas na ida e na volta também não eram um incentivo. O CD que eu escutava tinha até gasto, de tanto que rolava. Eu queria abrir a janela e gritar ao mundo que todos saíssem do meu caminho naquele instante. Mas não o fazia. Vai que nesse abrir de vidro alguém viesse me assaltar e eu perdesse o dinheiro que não tenho? Talvez eu saísse do carro e matasse o vagabundo, mas daí, iria para prisão fazer um serviço de presidiária, o que aliás, não deve ser muito diferente do meu. Mas estamos tentando melhorar e solta aqui na selva de concreto eu posso pelo menos trocar de roupa.

Minha casa é pequena. A cozinha é ridícula, cabe metade de uma pessoa cozinhando, e felizmente, sou uma pessoa inteira. O banheiro, se não tomar cuidado, molho a sala. A lavanderia é apertadíssima, minha roupa quase nunca seca de verdade, fica cheirando a mofo e tenho que lavar tudo de novo. Meus vizinhos estão entre velhos malucos, casais homicidas e crianças hiperativas. Sem contar o papagaio da vizinha que ama o hino do São Paulo. Minha casa é pequena, muito pequena. Não cabe nada, eu não caibo nela. Mas eu não caibo no meu corpo. Não caibo na minha vida. Eu quero mais que essa caótica, despropositada e chata vida que me deram. Sim, alguém sádico me colocou nesse corpo, nessa casa, nessa vida ridícula. Eu sonhei mais, eu quero mais, eu lutei por mais que isso. Queria me sentir mais livre, mais feliz, mais satisfeita. Odeio a repetição dos dias... parece um filme desgraçado de ficção, onde a pessoa fez alguma merda muito gigante na vida e foi punida. Daí, acorda todos os dias no mesmo dia, até corrigir a maldição do erro. Mas o que eu errei? O despertador, ou alarme do apocalipse como carinhosamente o chamo, me acorda todo dia para o mesmo dia. O tédio nem acorda mais comigo... logo acordo só.

Eu tento ser gentil, despertar o médico e ser uma maluca clássica. Mas não consigo... quando vou ser educada, nobre, logo me prejudico. Parece que nada que faço leva a lugar nenhum. Eu quero uma casa maior, para minha alma, mas ela nunca chega. Só que o lugar já está atulhado. Além do tédio que divide casa comigo, tem esse monstro, que apesar de preguiçoso e fracassado, é grande demais. E sobra tristeza, desespero, descontentamento que formam pilhas até o teto da minha vida. Já disse, minha vida inteira é como calçar um sapato apertado durante 30 anos. Não cabe. Aperta, machuca. Eu me sinto doente, talvez devesse procurar um médico. Parece que cada dia eu incho mais, como em um processo alérgico à minha vida, a inflamação infiltrada na minha alma, a febre convulsionando minha razão. E cada dia mais, minha vida e meu corpo me parecem mais e mais apertados e desconfortáveis. Um dia eu enlouqueço, se já não o fiz. Um dia meu monstro cria vergonha na cara e levanta, transtornado de loucura. E não vai ser um clássico. Pode apostar.


Até a próxima =D