15.10.14

Love Reign O'er Me

               Eu não me importo se amanhã você se for e não voltar mais. Não hoje, enquanto assisto ao seu sono tranquilo, satisfeito. O jeito que a luz da lua entra pela janela, inunda o quarto desse sentimento que, se amanhã você se levantar dessa cama e for para não voltar, tudo bem. Valeu a pena. Por cada segundo que passamos, desde o momento em qual você apareceu, tão despretensiosamente, até aqui, meu. Nem que só por mais essa noite.
                Cansei de viver correndo atrás do amanhã, gastando tudo que tenho, o agora, pensando no momento em que você irá embora. De imaginar quando e como você irá partir meu coração. Gostaria de lhe acordar agora, te envolver em um abraço muito forte, respirar o aroma delicado da sua pele. Mas isso é para depois. Agora quero me esforçar para guardar não você, somente, mas esse nosso momento, com todas suas cores e luzes e sombras, para sempre no meu coração. Pois se você for embora ao amanhecer, levando embora tudo de bom que há entre nós, eu sempre terei esse instante. E ninguém, nem mesmo a crueldade das garras do tempo, há de tirá-lo de mim.
                E um dia você não estará mais aqui, eu sei. Talvez seja eu que parta, mas ainda que eu vá embora, vou levar essa noite comigo. E as músicas que ouvi você cantar tão apaixonadamente, mesmo que desafinando. E os riffs de guitarra que me fez prestar atenção? Até para o baixo que eu nem ligava... ou ainda essas músicas que cantamos juntos, às vezes nos imagino em um musical, daqueles bem clássicos, onde colocaríamos nossos elegantes chapéus e tiraríamos desconhecidos e velhinhas para dançarem com a gente. Um dia, quem sabe, vou odiar todas essas músicas por serem não só suas, mas nossas, mas eu não me importo. Não hoje. Agora elas me fazem rir e sorrir, eles me aproximam de você. Quando você não está, elas estão.
                Ainda que daqui a umas horas ou alguns anos você não esteja na minha cama ou na minha vida, vou lembrar das nossas conversas intermináveis, de como fomos tímida mas tão espontaneamente nos conhecendo, descobrindo tantas coisas em comum, rindo de nossas piadas tão infantis, tão nossas. Somos como loucos, quase não levando essa vida a sério. Um dia, talvez, a simples menção de seu nome faça lágrimas brotarem dos meus olhos, mas esse seu sorriso inocente sempre vai aquecer meu coração, ainda que o faça doer um pouco também. Ou sua risada interminável, caudalosa, tão entregue. Sua vitalidade, que ilumina seus olhos, eu a sorvo quase de forma egoísta. Mesmo que sabe-se lá quando, ela vá preencher e a vida de outra pessoa e não mais a minha, eu já ganhei umas horas de vida por causa dela. E alegria, ah, a alegria! Sua presença é como um raio de sol atravessando minha pele, aquecendo minha alma, como respirar ar fresco pela primeira vez em tanto tempo. É da forma mais clichê que conheço, o arco-íris depois da tempestade. Então, se você me disser adeus amanhã ou na semana que vem, ainda estarei cheia de gratidão por tudo que vivemos até agora.
                Quando não houver mais seus lábios, tão sensuais e convidativos para beijar por horas, ainda sim terei gravado em mim esses momentos cinematográficos tão bons de lembrar, relembrar, reviver... Aquela tarde, onde o sol precioso de outono aquecia minha nuca descoberta, que logo em seguida era acariciada pela brisa fresca, e você ali ao meu lado, sem que eu pudesse lhe tocar, apenas observar, admirar, querer... Ou naquela mureta, o céu confuso com a tempestade que se formava, o cheiro da chuva por vir e dos pinheiros que nos observavam, ouvindo aquele solo que você tanto adora, sentindo os pelos do meu braço se arrepiarem aos poucos pelo clima, pela expectativa, pela promessa... nossos lábios finalmente se tocando, como nos entregamos a cada toque. Ah, o mundo e as pessoas simplesmente não existiam, só aquela sensação de plenitude, de enganar o próprio tempo, de termos algo mais importantes do que qualquer outra coisa, de sermos e compartilharmos. Você abriu os olhos e sorriu. Ainda que não haja mais amanhã, eu terei essa memória, essa tarde, tão doce, tão pacifica.
                Quando essa noite tiver fim, quando o primeiro pássaro cantar ainda sonolento e o vizinho ligar a TV, eu ainda a terei, intacta em um lugar especial do meu coração. Saberei mais do que de cor as curvas do seu corpo, a força do seu desejo, seus suspiros longos, o calor da sua pele, a intensidade do seu olhar que não deixa o meu. Ela vai ser preciosa ainda que um dia não nos suportemos, eu vou amar essa noite. E tudo que nos levou a ela. Vou respeitar esse sentimento e protege-lo dos horrores da vida. E toda vez que me lembrar dela, eu vou amar você de novo, só mais um pouco. E ainda que seja mordida pela tristeza e pela desilusão, vou saber que um dia eu fui mais que isso, mais que dor e vazio. Vou saber que desafiamos o tempo, que eu não só vi, mas vivi a beleza e a verdade... a mágica. Sim, a mágica, uma vez ao menos fui tocada por ela. Ainda que, quando você for, leve junto meu coração, eu sei que valeu a pena. Afinal, o que é a vida senão essa sucessão de dias longos e cinzentos, permeados por esses momentos de graça?
                Então, se você se for... eu vou entender e seguir a vida, cabeça erguida e com todos esses pequenos pedaços de alegria nos bolsos.
                Mas... seria tão bom se você ficasse...

29.6.13

Amores Platônicos



Impossível ouvir Chico sem lembrar de você.
Sem lembrar sua pele e compleições de menino, do seu cabelo escuro cor de noite, dos teus cílios femininos, seus olhos profundos, da sua forma esguia, sua beleza longilínea. Difícil não pensar nos seus lábios fartos, desenhados, quase vício .A melodia vem me lembrar dos seus trejeitos sombrios e sutis, do seu silêncio misterioso, da sua risada de criança e do discurso envolvente, de cadência macia. Quando você fala, o mundo cala para eu te ouvir.
A voz não me deixa esquecer o sorriso discreto, o abraço demasiado breve, a paz sem fim que você me faz sentir, de estar do seu lado, o calor da sua palma, a batida nervosa do seu coração.   
Ouvir Chico é lembrar a distância que ainda é muito grande, o desejo cada vez maior, a minha teimosia burra, é perceber que te perco sem nunca ter ganho.
Ouvir Chico, amaldiçoado, coitado, pela sua recordação, é trazer você para junto de mim, viver seu olhar, sentir seu perfume na minha pele, deitar com sua figura na minha memória.
Ouvir Chico é tortura, é perdição, é desejar além do que eu posso conseguir, é amar a ideia, suspirar minha frustração.
Mas não consigo, não consigo parar de ouvir Chico...

30.12.12

Bodas Carmesim


Último conto 2012.
Que em 2013 haja mais inspiração (e disciplina)
Até mais.
             


BODAS CARMESIM 

   Aquela última garfada lhe caiu particularmente mal. Não que as outras tinham sido de alguma forma agradáveis, mas aquela última acabou precocemente com seu apetite. Olhou para o prato meio vazio, sentindo náuseas. Mas preferia olhar para aquela comida indigesta do que encará-la. Ele podia sentir seus movimentos na outra ponta da mesa, ouvir o barulho da faca cortando o pedaço de carne mal-passada. Até sua mastigação, lenta, dura. A TV não podia disfarçar o extremo desconforto. Nada podia disfarçar o que pairava sobre a mesa farta do jantar. Ódio. E medo.
                Ele não fazia o tipo covarde. Tinha passado por maus e tensos bocados durante a longa vida, inclusive aquele assalto, ainda podia lembrar-se do revólver pressionando suas costelas. Ele teve medo, suou frio, as pernas bambearam. Sabia que ali poderia ter perdido sua vida. Mas foi um choque de adrenalina, poucos minutos, apesar da eternidade de sua duração relativa. Porém, aquele medo não era como nada que já tinha experimentado. Era constante. Sufocante. Exasperante. Estava ali com ele durante a refeição. Quando saia para o trabalho, sempre esgueirando por trás dos ombros. Quando chegava a casa. Respirava fundo, três vezes, antes mesmo de colocar as mãos na maçaneta. E o pior. Quando ia dormir. Sua audição parecia ficar milhares de vezes mais aguçada, cada mínimo ruído o despertava. Seu corpo todo estava em constante alerta, esperando algo muito ruim acontecer com ele. Era cansativo. Seu corpo doía, as articulações pareciam duras, os olhos como se fossem polvilhados constante com areia. O pânico era implacável.
                E o que despertava esse medo?
                _ Minha comida está assim tão detestável?
                Ele levantou os olhos com muito esforço. Seu corpo estremeceu.
                _ Meu... meu fígado está bem ruinzinho hoje. Sua comida está boa sim.
                Engoliu seco. Esperou. Ela o encara com frieza. E ódio. Sim, por debaixo das camadas de gelo, havia lava borbulhante. Desviou o olhar e afastou o prato. Até quando poderia viver assim?
                _ Bem feito. Fica comendo porcaria na rua. Você não tem mais idade para isso.
                Ele levantou devagar da cadeira para deixar a mesa. Não ouvindo nenhum comentário pernicioso, investiu em uma fuga bastante imperceptível. Seu quarto, o único lugar “seguro”.
                Ele nunca se sentia seguro de verdade.
                Não no mesmo teto que ela.
                Entrou no quarto e cuidou de trancar a porta. Há alguns anos, não seria necessário fazer isso. Mas naquele dia seu pânico tinha atingido tais proporções, que sentia que o coração ia explodir em desespero se não pudesse contar com nada que lhe proporcionasse a mínima ilusão de segurança.
                Caiu pesadamente na cama, que gemeu levemente com o impacto. As luzes estavam apagadas e ele suspirou pesadamente. Por um minuto, sentiu o corpo relaxar. A mente baixar a guarda. Contudo, sentiu que choraria a qualquer momento. Àquela altura da vida. Riu, nervosamente. Era um velho ridículo mesmo, ela tinha razão. Contudo, a lembrança de sua imagem mórbida tensionou-o por inteiro novamente.
                Tinha que ser hoje.
                Eram casados há 40 anos. Mas sua esposa dificilmente lembrava a mulher com quem ele casara. Oras, ele provavelmente também era pouquíssimo parecido com aquele jovem entusiasmado, cheio de planos, charmoso. A idade não poupava ninguém, as rugas ao redor dos olhos eram testemunhas inquestionáveis. Mas basicamente, ele era o mesmo, bem no fundo, apenas uma versão envelhecida de si mesmo. Isso se você não contar que, naquele exato momento, ele era uma versão envelhecida e mortalmente apavorada.
                Sua outrora bela esposa, contudo, fora transformada muito além da erosão normal do tempo. Não eram suas rugas, sua pele flácida, os muitos quilos a mais, o cabelo acinzentado, a gradual perda de energia. Era o que ela era de verdade. No fundo. Sua alma, ele atreveria a dizer. Tudo bem, ela nunca foi a mais doce das mulheres. Fazia a linha durona, esquentada, tinha um humor realmente caustico. Mas era boa pessoa. Agradável, ótima de se conversar. Ele sorriu amargamente, um gosto acre no fundo da boca. Ele a amara. Loucamente. Olhou para a porta. Agora ele a usava trancas para se proteger. Que infelicidade.
                Tinha que ser hoje. Sua saúde já não era a mesma. Inclusive a mental, ele temia. Tinha que se libertar daquele horror que o possuía. Tentara lutar contra ele. Muito. Mesmo quando o amor e a amizade, cola que gruda muitos casais depois de tantos anos de união, já tinha se tornado indiferença. Mas a indiferença era perfeitamente aceitável. Mas não a eminência da morte no quarto ao lado, roncando como se fosse um cão infernal. Nunca tinha ouvido nenhum relato de um marido aterrorizado por sua esposa. Era quase risível a situação.
                Mas não havia nada de engraçado. O tragicômico passava longe daquela situação. Era um filme de terror, rodado em loop em sua mente insone, abatida, derrotada.
                Pensara em uma Síndrome do Pânico. Era só um nome para uma doença para lá de esquisita. Pensara em demência precoce, pensara em esquizofrenia, em paranoia, em intoxicação por alguma toxina na casa, no trabalho. Bolores do mal, aham, já tinha visto um documentário sobre aquilo (trancado a sete chaves em seu quarto). Mas ele sabia que no fundo estava tentando ser solidário consigo mesmo e com sua ex-esposa. Ex, porque aquela mulher tenebrosa não era sua esposa de forma alguma. Era impossível.
                Ela começou a mudar lentamente. Suas piadas não tinham mais humor. Eram críticas, ofensas. Sua gargalhada, que antes era espalhafatosa, mas gostosa de ouvir, tornara-se um ruído rouco e irônico. Seus olhos tinham mudado, seu olhar. Era mais do que duro ou carregado de ódio. Era vil. De gelar a espinha. Ela transpirava ódio. Sua postura, sempre tensa, o jeito como sua mandíbula parecia sempre contraída. Qual fora a última vez que a vira sorrir? Seu silêncio era assustador. O jeito como às vezes a via sentada a penteadeira antiga, presente do casamento dos dois, penteando os curtos cabelos, os olhos anuviados e olhar perdido, as mãos como garras cravadas na escova, longas, demoradas e incansáveis escovadas. Ou quando ele a pegava olhando para ele, desprezo. No tom de suas palavras contra ele. Sim, ela não se dirigia mais a ele, e sim contra ele. Ela tinha se tornado uma sombra, curvada, carregada, aquele tipo de pessoa que só de sentar perto de você, faz seu corpo se arrepiar como em um mau presságio.
                E o mau presságio era a morte. Ela o odiava com todas as fibras de seu ser. Ela o queria morto. Ele sentia isso como se soubesse de verdade. Como se ela o tivesse ameaçado com palavras nocivas e cruéis... não, ainda pior: como se o tivesse jurado de morte. E essa jura implícita e quase sutil era o que o deixava apavorado. Era mais que o desconforto de viver e dividir a casa com alguém que obviamente não o queria ali; era o temor por sua vida. Ele acreditava estar em constante perigo. Por isso seu comportamento praticamente furtivo. As portas trancadas. Ele queria sobreviver. Queria escapar. Precisava continuar vivo.
                E não podia dividir isso com mais ninguém. Tachariam-o de louco, com certeza. Como explicar que aquela senhora soturna, mas de comportamento respeitável, estava planejando matá-lo? A convivência externa, sempre breve, com certeza não era a mais confortável e agradável para as outras pessoas, mas também não era do tipo perigosa. Olhá-la e considerá-la uma ameaça mortal parecia de fato loucura e descontrole. Até mesmo uma piada de mal-gosto. Mas ele sabia mais. Sua presença era mais que inconveniente; era fatal. Seu comportamento para com ele, por vezes, ultrapassava as agressões verbais e a frialdade do desafeto. Tornava-se agressiva. Sua voz adquiria tons de descontrole, flertando com uma agressão física eminente. Suas pausas e seu silêncio pareciam prepará-la para algo pior. Assim como ele estava quase transbordando de terror, ela estava prestes a transbordar de ódio. Nada bom poderia surgir dali. Ele tinha que escapar. Imediatamente.
                Levantou da cama decido, apesar de estar tremendo e dominado por um horror maior que ele mesmo. Era o comportamento de um animal acossado, lutando para fugir de uma armadilha dolorosa, olhando diretamente para os olhos sem piedade do caçador.
                Ela estava sentada no sofá da sala, os olhos daquele jeito sombrio, perdidos, desconcentrados, mortos. A sala vibrava apenas com as luzes do televisor. Acendeu as luzes e reunindo forças que só um sobrevivente consegue, começou a falar.
                _ Precisamos conversar.
O pescoço se moveu lentamente da televisão para ele. Mediu-o de cima a baixo, o desprezo crescendo em seu rosto, dando-lhe um esgar praticamente demoníaco e quase intolerável de observar. Ele não desviou o olhar.
_ O que pode ser tão importante para você ter coragem de sair de sua pequena cova?
Seu tom era ácido, como sempre. Ela estava, enfim, deixando bem claro que sabia estar conversando com um velho pateticamente em pânico crônico. Parecia, de uma forma doentia, apreciar esse conhecimento.
_ É muito importante.
_ Vindo de você, acho difícil acreditar.
A ênfase em você o deixou profundamente nauseado. Queria sair correndo. Devia fugir, porque mesmo ele queria deixar as coisas em pratos limpos para seu algoz? Talvez porque aquela criatura um dia fora alguém que ele amara. Por respeito a um passado morto e enterrado, que parecia ter acontecido a milhões de anos? Talvez aquela conversa fosse uma estupidez sem tamanho e o preço dela fosse mais alto do que ele pudesse pagar.
Em um reflexo rápido e primordial, ele virou as costas e apressou-se em direção a sua “pequena cova”. Não teve tempo de ver o que aquele gesto impulsivo causara naquela harpia, e nem queria ter que encará-la. Para o inferno com a consideração; sua esposa estava morta há um bom tempo.
Rapidamente, tirou a mala de viagem grande e surrada debaixo da cama e abriu os armários com violência. Começou a tirar as roupas de forma desordenada e socá-las no fundo da mala, mas logo desistiu. Correu para a escrivaninha e começou a tirar coisas de muita importância, coisas que simplesmente não poderia deixar para trás. Perdeu um tempo maior com elas, mas só porque não tinha a menor intenção de voltar. Nunca mais por os pés naquele lugar que um dia chamara de lar, doce lar.
Foi quando ela irrompeu pela porta. O barulho o fez virar e encará-la. E só não gritou porque um vestígio de autocontrole ainda circula por seu corpo.
Parecia um monstro, os olhos inflamados de ódio e não havia outra palavra para descrever o que ele testemunhava. Estava encurralado outra vez. Sentiu que poderia chorar de medo, puro medo, ao primeiro grito inumano que saísse da boca contorcida daquela mulher.
_ O que demônio você está fazendo?
Era pior que um grito. O tom baixo e esgarçado de sua voz era... do além.
_ Indo embora. Preciso ir embora!
_ Do nada?!
_ Do nada, não. Eu... preciso ir! Não posso mais viver aqui, em lugar nenhum debaixo do mesmo teto que você!
_ Ficou gagá, seu estúpido pedaço de merda? Quer que eu chame um maldito médico? Ou melhor, chamar um hospício e te jogar lá para sempre?
_ Até um hospício seria melhor que viver com você! O inferno parece até um lugar acolhedor!
Arrependeu-se muito daquelas palavras. Ele também não era assim. Não era um grosso, não queria feri-la de nenhuma forma. Mas era tanto acumulado, perdera o controle. O medo tomara posse de seu corpo por inteiro. E também de suas palavras e atitudes. Contudo, estava profundamente chateado. Essa era aquela parte que há minutos queria ter uma conversa, na medida do possível, saudável com aquele monstro flamejando de raiva que bloqueava a única saída do quarto.
_ Crise da meia idade? Não seja ridículo! Está comendo alguma vadia por aí? Ah, não, você é muito nojento e pobre para isso!
Sua risada rouca o arrepiou. Tinha urgência. Contornou a cama e recomeçou a jogar roupas de qualquer forma na mala.
_ Só me deixe ir, pode ser? Não quero transformar essa situação em uma coisa pior.
Tipo, você acabar me matando de fato.
_ Não pode ser coisa nenhuma! Quarenta anos comigo e você vai sair na calada da noite de casa?  O que eu vou dizer para os vizinhos? Que meu marido é um velho coroca filho da puta?
_ Diga o que lhe der na telha. Pode me xingar de todos os jeitos. Se você quiser, saio da cidade! Nunca mais dou as caras!
_ E me deixar morrer de fome? Depois de todos esses anos a idiota aqui limpando o chão onde você pisa? Cozinhando e te deixando bem alimentado? Olha como você está gordo! Mal é que você não comia! Criando as porcarias de seus filhos? Quem você acha que é?
UM VELHO APAVORADO!
_ Covarde.
_ Como queira. Não tiro sua razão de forma alguma. Estou errado. Mais do que qualquer coisa. Nada me dá o direito de fazer o que estou fazendo. Mas... eu preciso ir.
_ Vá para o inferno, seu maldito!
Ela bateu a porta e ele pode ouvir seus passos quase afundando o chão. Fechando os olhos, ele inspirou e inspirou várias vezes. Sentiu o corpo quase assentar. Abriu novamente os olhos e continuou apressadamente a pegar coisas pelo quarto. Quinze minutos depois, deu uma olhada pelos cantos e tentou se certificar de que tinha pegado tudo que realmente precisava. Não se sentia covarde. Sentia-se a poucos passos da liberdade. De uma coisa que ele recordava vagamente do que era.
Paz de espírito.
Poucos passos. Poucos minutos. Respirar fundo, manter o controle. Ele só precisava sair da casa.  Depois poderia dormir tranquilamente pela primeira vez em cinco anos. Sem insônia, sem olhar no retrovisor do carro. Sem se esgueirar pela casa. Sem se assustar com barulhos bobos. Sem medo. Era o que ele mais desejava no mundo.
Uma batida na porta.
Duas.
Três.
_ O que foi?
Porque ela não escancarava a porta e o alvejava com mais palavras? Porque ela tinha desistido tão fácil? Para ela, meia dúzia de ofensas realmente tinha sido muito pouco. Será que ele estava mesmo perdendo o juízo e exagerando? Será que ela não estaria se sentindo tão assustada e vulnerável como ele e a única forma de se proteger foi com toda a hostilidade que demonstrara? Será que ela não queria perdê-lo e só tinha reagido de maneira diferente da dele?
Quatro.
_ Abra, quero conversar de verdade. Sem desrespeito.
Não.
Aquele tom em sua voz. Era ruim. Era zombeteiro.
Era um mau presságio.
_ Abra, por favor.
Não.
Estava petrificado de pânico. Não podia se mexer, não queria se mexer.
Um animal em uma armadilha.
Tremia, sentia um suor gelado escorrer lentamente pela sua testa.
_ En... en...
Sua voz se recusava a sair. Não queria morrer. Não queria de forma alguma.
_ Entra.
A porta se abriu lentamente. O corredor atrás dela escuro. A casa estava mergulhada em silêncio perturbador. Até o televisor estava desligado. Sua expressão era neutra, mas seu olhar era mal, uma sombra escura se formava embaixo dos olhos. Ela deu dois passos em direção ao centro do quarto. Ele quis pedir para ela não se aproximar mais, contudo, estava tão tenso, que temeu esquecer-se de respirar.
Ela olhou em volta, o quarto em um estado de caos.
_ Você vai mesmo.
_ Sim.
_ Faz uma última coisa por mim?
_ O que?
_ Lembra daquele livro que te dei, há muito? Aquele que você sempre deixa aí em seu criado mudo?
Ela apontou, seu dedo era quase uma garra. Com o canto dos olhos, procurou o criado mudo.
_ Eu...
_ Por nós. Faz esse último favor e não te incomodo mais. Vá viver sua vida, como queira. Mas deixa-me esta última recordação.
Conflito.
Não confiava nela.
Naquilo.
Mas ele tinha sido cruel com a pessoa com quem vivera durante quarenta anos. Muitos deles tinham sido bons. Ele a estava deixando sem mais explicações, de forma covarde e desleal. Ela tinha gritado seus bons e velhos insultos, mas eles eram velhos e cansados. A vida não afeta a todos da mesma forma. O tempo lhe trouxera aquele medo irracional. A ela, o amargor. Poderia culpá-la? Ele só queria sair dali. Não custava um último gesto de compreensão.
Virou-se e se inclinou para abrir a gaveta.
A próxima coisa que sentiu foi a violência do golpe no meio das costas. Era algo grande e afiado, cortando sua carne como se fosse manteiga. A dor foi indescritível, acompanhada de um choque tamanho que não conseguiu sequer articular um grito, um pedido de socorro. Sentiu o que parecia ser uma lâmina saindo de corpo e segundos depois, entrando novamente em outro lugar. A dor o cegou de pronto, não conseguia mais respirar. O processo se repetiu mais umas quatro vezes, sem perder a intensidade, sem perder a força insana.
Deixou o corpo desabar de bruços no chão. Sentia a vida indo embora, como se ela fosse fluida, palpável, não mais um mero conceito. Buscava o ar, que não vinha. Só conseguia enxergar pontos pretos e nebulosidade. A dor cessara, talvez fosse tamanha que o corpo desistiu de traduzi-la. Sim, seu corpo estava desistindo de muitas coisas, principalmente de se manter vivo.
Sentiu o pé de sua mulher, um dia amada, aquela mesma que estava linda de tirar o fôlego no casamento deles, virá-lo. Ela queria ainda olhá-lo nos olhos. Mas ele não sentia mais medo ou indignação. Esteve se preparando e tentando evitar aquele momento horrendo. De olhar nos olhos dela uma última vez e ver mais que maldade, mais que ódio. Ver a morte. Tão personificada como a vida saindo dele.
_ Vá embora, vá para sempre, seu velho maldito.
Os olhos se fecharam e a última coisa que sentiu foi que agora o medo acabou.
Não tinha mais que fugir.

4.10.12

Para Sempre Partido






Para Sempre Partido


Acordou com os rugidos selvagens de uma cidade que se recusava a dormir. O corpo estava excessivamente quente do lado esquerdo, a garganta seca arranhava um pouco. O sono havia se desapegado dele sem muito esforço. Observou o teto onde as luzes da avenida se refletiam em flashes descontínuos. Sentiu que poderia ficar ali, assistindo essa brincadeira a madrugada inteira, sem pensar em nada especial, nada perturbador. Até queria que isso fosse possível... seria um alívio enorme. Levantou-se com cuidado para não acordá-la e tateando a escuridão, achou uma peça de roupa qualquer largada ao chão e dirigiu-se rapidamente a cozinha para beber um pouco de água. A sede era de matar!
Ao voltar, movendo-se silenciosamente pelo apartamento, como uma sombra, fuçou os bolsos das calças e encontrou seu maço de cigarros. Abriu com o máximo de cuidado a porta de vidro da varanda, sentindo o vento gelado da noite arrepiar os pelos de sua nuca, acariciar suas costas nuas e quentes. Deixou-se tomar por aquela sensação gélida e sensual e fechou a porta atrás de si, abraçando a solidão daquele pequeno espaço, separado da jovem por aquele vidro fosco e do resto do mundo por oito andares. Segurança, por alguns momentos, o enlace solitário do vento era pura segurança. Logo menos seria um resfriado, com certeza, mas aquilo era a melhor coisa que tinha naquele momento.
Apoiando os cotovelos nas grandes de segurança, acendeu o cigarro merecido. A ponta incandescente sempre tinha aquele efeito hipnótico sobre ele durante a noite, quando parecia ser a única luz a guiá-lo em meio à escuridão desconhecida. Dando as costas para a cidade ensandecida, passou a observar, com um pouco de dificuldade que lhe aguçava a imaginação, o corpo que compartilhava sua cama naquele momento. Ela estava deitada de bruços, semi-encoberta por um lençol fino e negro, contrastando com sua delicada pele clara de menina. O começo de uma complexa tatuagem marcante era visível, perdendo-se por dentre os vincos enegrecidos do lençol. Seus cabelos, tão escuros como a penumbra que dominava o quarto, só se distinguiam por estarem espalhados nas fronhas claras e por terem um brilho quase sobrenatural. Daquele ângulo não podia ver-lhe o rosto, apenas os contornos bem feitos dos ombros pequenos, das costas torneadas. O que será que sonhava? Ressonava tão tranquilamente, via as costas subirem e descerem ritmadas por uma respiração tranquila. Estava feliz. Nem precisava de luz ou do ângulo certo para saber que em seu belo rosto sem marcas, pousava um sorriso pacífico, banhado de satisfação. Um sorriso nele próprio despontou, mascarando uma afeição que a todo custo tentava evitar. Contudo, ao terminar aquele primeiro cigarro, sentiu um vazio tão imenso apertar seu peito, tão intenso, que temeu perder o equilíbrio. Segurou-se com força na grande e puxou o ar cada vez mais frio em grandes golfadas de desassossego. Que diabos acontecia?
Quando se sentiu mais estabilizado, ainda que imerso em uma tristeza que cortava mais que o vento gelado, acendeu outro cigarro, endireitando a postura e o fluxo de pensamentos, agora evitando a bela visão da jovem, de seu sono invejosamente inabalável, daquela paz que um dia tivera. Nunca mais seria o mesmo. Nunca mais seria como ela. Relembrou a conversa de algumas horas antes, entremeadas com generosos goles de vinho.
_ Então... você nunca amou ninguém?
_ Acho que não. Pensando bem, sendo sincera... de verdade?
_ Nada mais que a verdade.
_ Não, nunca.
_ Uma virgem de sentimentos.
_ Exato.
_ Hum... interessante.
Um longo silêncio se prosseguiu, sem ser desconfortável ainda.
_ Não há mais chances para mim, então.
Viu-a corar instantaneamente, as maçãs do rosto afogueando-se tanto, que desviou o olhar para a taça de vinho pela metade. Então, um silêncio constrangedor colocou-se entre os dois por aqueles momentos desconfortáveis com aparência de eternos.
_ Não foi o que quis dizer...
_ Podemos ir?
Riu-se, agora, sozinho, sem o nervoso de ter que lidar imediatamente com a situação. Ela não entendera o que ele quis dizer. O que ele queria dizer realmente era exatamente aquele pavor repentino que se assomava na alma naquele instante. Não havia mais ponto de retorno. Para ela, talvez. Mas a vida o tornara aquele homem que uma versão jovem dele mesmo não reconheceria. Toda aquela espontaneidade que transcendia dela, aquela entrega sem reservas... não fazia mais parte da alma dele. O tempo o transfigurou naquela versão adulta e um tanto amargurada, com tantas coisas para trazer de bagagem, tanta... dor. Decepção. Um número grande de sentimentos que ela não conhecia o gosto, não conseguiria nem imaginar. Não importava o quanto amor ele ainda havia de viver, com certa uma quantidade maior do que havia vivido até então, mas não havia como ser como antigamente. Aquela ingenuidade sentimental, aquela pureza que o fizera pastar em amargos campos de desapontamento e intranquilidade, aquilo fora assassinado no primeiro contanto com os lábios da primeira mulher que veio a amar. No primeiro olhar dissimulado. No coração partido que achou que fosse matá-lo. Podia se curar de todos os ressentimentos e raivas contra a vida e as pessoas que juraram amor e o abandonaram. Ou superar toda a paixão que viu morrer dentro de si, de repente, de todo não que teve que pronunciar, de todo e qualquer coração que viu partir por sua culpa. De vítima a algoz, repetidamente, do paraíso das juras eternas ao inferno das promessas quebradas... aquilo fazia parte dele, para sempre. Não era passado, morto e enterrado. Mudado, transformado.  A dor tornou-se o medo dela, o amor tornou-se a ânsia e a carência, as promessas tinham peso de dívidas, o descontentamento parecia o fim de toda a estrada. A experiência o fez mais preparado, aprendeu a superar mais fácil, a compreender os caminhos tortuosos que tinha que percorrer. É claro, a experiência abriu-lhe os olhos a mentiras descaradas que algumas tentavam-lhe dizer, tornou as palavras preciosas como atos. Tornou-lhe mais preparado e apto a viver em um mundo feito de ciclos de felicidade e agonia. Era grato por isso. Mas, observando aquele ser imaculado, agora podia ver-lhe o rosto, cheio de esperança, cheio de possibilidade, sem dor, sem nenhuma dor, trocaria toda aquela experiência que conquistou durante anos de estrada, por aquele semblante satisfeito, aquele sorriso... aquele sorriso cheio de paz. Era estonteante. Era consolador. Era uma coisa que não existia mais nele. Não era inveja, era saudade. Uma saudade pungente com gosto de morte. Cheiro de flores. Era irresistível.
Entrou no quarto com cuidado e deitou-se, devagar na calma, não querendo acordá-la. Envolveu carinhosamente em um aperto gelado e sentiu o choque de temperaturas. Viu o corpo dela se arrepiar, cada pelo responder ao contato. Ela se mexeu preguiçosamente, aceitando o abraço, murmurando algo inteligível. Beijou-lhe a bochecha e fechou os olhos.
_ Está tudo bem. Volte a dormir, linda.

16.9.12

O Pranto e a Pena


Esse não é um dos meus melhores contos, mas é o que tenho de mais novo. Espero que gostem. 


O pranto e a pena


OBS: Nenhuma lágrima foi derramada durante a criação deste conto.

O pranto é praticamente a primeira linguagem que o ser humano conhece. Quando somos tão pequenos e frágeis, tudo que sabemos para dizer ao mundo o que sentimentos, seja dor, fome, solidão (que nos acompanhada desde o momento que somos separados da segurança de nossas progenitoras), é chorar. A angústia que nos acompanha desde o começo, mas funciona. Uma mãe sempre sabe o tipo de choro de seu filho. E mesmo que com o tempo, aprendamos a nos comunicarmos de maneira aparentemente mais refinada, muitas vezes as palavras nos faltam de tal forma, incapazes de traduzir o absurdo crescente dentro de nós, que retornamos às nossas origens e choramos. Choramos até nada mais importar, até o os olhos arderem, o fôlego faltar e as coisas parecerem melhores, como se as lágrimas pudessem realmente lavar a alma.
E ela, que vivia e amava as palavras, via-se em situação parecida. Ela, que tão habilidosa fez delas sua vida, sua profissão, encontrava-se com a mente calada sobre aquele assunto. Mas não o coração. Ah não, esse parecia ter uma voz grave e continuava a lhe perturbar o dia e o sono. Algo sinistro acontecia nela, algo que doía, crescia, amargurava. E tudo que queria era poder falar sobre aquilo, como se assim, compartilhando seus mais íntimos e sombrios sentimentos, pudesse suavizar seu sofrer. Contudo, não havia jeito de botar para fora aquela coisa horrenda. Sentava-se, já se frustrando pela previsão de fracasso, a frente da tela do computador ou da folha vazia, todas inquisidoras e levanta-se, dez minutos depois, correndo de si mesma, de sua falta de êxito, dos próprios pensamentos que não a deixam.
Quase três anos de silêncio. Ela desconfiou no principio, quando toda a dor ainda era felicidade, muita felicidade, daquelas extasiantes, de tão forte que cega, que havia algo de peculiar. Escrevia até para o gato que dormia na janela do vizinho, sobre aquele único beijo com aquele desconhecido, sobre as cores que pintavam o céu durante o ocaso. Tudo era material para preencher o papel, libertar a alma. Achava-se quase uma alquimista por vezes, por transformar toda dor e desespero em coisas cheias de beleza, de poesia... arte. Todavia, todas as vezes que tentou dizer algo ao papel sobre o que sentia sobre o assunto, a poesia morria dentro de sim, uma greve de silêncio. O amor continuava alimentando-a, dando-lhe forças... mas suas palavras simplesmente se recusavam a participar da celebração. E a felicidade era tanta e o mundo tão cheio de outras possibilidades muito mais literárias, que se esqueceu da peculiaridade e continuou a viver, completamente entregue as coisas boas e lindas que vivenciava. Riu-se, desafiadora, um dia, acreditando que a vida real algumas poucas vezes poderia ser melhor que a ficção.
Hoje, em retrospectiva, parecia-lhe que tudo aquilo fora uma grande idiotice de sua parte. E como castigo, até a ficção queria lhe abandonar. Como ele fez. Sabia que ela nunca faria efetivamente, era leal. Sabia que um dia conseguiria falar disso, quando estivessem as feridas seguramente cicatrizadas, quando fosse saudável discursar sobre a dor. E sobre aqueles sentimentos, aquela estranheza. Doía sem parar, doía quando ela achou que ia parar de doer. Eram lacerações surpresas, tiros disparados ao acaso que a acertavam diretamente no peito sem aviso, sem fazer barulho.
Olhava a situação de longe, sem querer olhá-la realmente, mas tinha que fazê-lo. Tinha que assistir ao enterro de suas últimas certezas, que agora tinha segurança que foram certezas que elas mesma imbecilmente criou. Cegada de amor, encharcada de endorfinas. Algumas horas não sabia de onde vinha aquela raiva, sim era raiva, um sentimento pungente, amargo, feio. Mas não vinha só, de forma alguma. Analisando com a calma fria de quem corta os pulsos por uma curiosidade mórbida, via que aquela raiva também se misturava a uma decepção cortante, a uma frustração que gritava contra si própria, a desesperança e o desassossego. Havia algo vivo dentro dela, se mexendo, crescendo, dilacerando sua mente. Não podia lutar contra aquilo. Não adiantava tentar se encher de compreensão, acreditar em um mundo melhor, que a vida ia continuar. Não ia. Não enquanto não colocasse aquilo para fora, expelisse sua alma e pudesse vê-la menos suja, menos doente. Não cessaria tal angústia enquanto não houvesse perdão. E como era difícil perdoar!
Havia de perdoar a ele, o imperdoável fato de sua fraqueza ou ainda pior, de suas más intenções. Qualquer um que fosse o motivo, por quê? Por que deixá-la viver naquela felicidade de mentira? Odiava a mentira mais que tudo. E a fraqueza dele, sua própria, ainda maior. Porque não estavam todos os indícios bem explícitos para ela, jogados em sua cara? Por que decidiu ignorá-los e caminhar para o esgotamento do que um dia fora, sinceramente, belo? Sua covardia de deixar o castelo em ruínas custara-lhe as últimas forças, os últimos fiapos de dignidade que os envolviam.
Como assim, era tão difícil deixá-la? Que comodismo barato, sujo! Que coisa horrível fingir que era amor, e ainda fingir-lhe mal, alimentando-a com migalhas esporádicas, sem promessas, só um contínuo vamos fingir que estamos bem. Por que tudo aquilo? Se por detrás de suas costas, ria-lhe de sua ingenuidade disfarçada de controle, de descolamento. Está tudo bem, somos um casal bem resolvido. Claro, ela era resolvida a ser uma fracassada e aguentar-lhe todas as intempéries de gênio terrível entremeados por momentos doces e divertidos que lhe sanavam a carência, que afastavam a insegurança e o terror. Pois sim, vivia aterrorizada, vivia em constante luta para mantê-lo ao seu lado, falsamente ao seu lado, para manter vivo aquele amor, que lhe parecia tão verdadeiro, tão determinado. Ah, que a raiva maior, ainda maior do que da falta de consideração e respeito dele, era por si mesma, pela sua ignorância, por ter fechado os olhos por tão pouco, ter perdido tempo esmurrando uma parede de concreto duro e consciente. Um dia ele vai ver, vai crescer e ver que as coisas são diferentes, que ele precisa me levar a sério. Ah, um pouco de prepotência, uma santa arrogância em alguém com tão pouca autoestima, quase que um sorriso sardônico do destino. Não, o tempo, o sagrado tempo que ela vinha sacrificando em um desejo que morria em si, mostrou-lhe que ela nunca fora mais nada que um companheiro de bar e uma cama quente durante a noite. E todo o amor, a beleza, a poesia que pregava na sua vida, onde foi parar? Dentro de seus sonhos, sonhados acordados, feitos em agrados, em compreensão, desperdiçados. A máscara de amor verdadeiro e maduro caiu e quando caiu, caiu dura e partiu-se em mil pedaços de verdades cruéis, penetrando e fazendo sangrar um coração que agora, parecia mais duro que sua antiga resolução de que aquilo devia ser amor. Mil pedaços de momentos, antes fantasiados em alegria, agora encravados de dor, de ressentimento.
Os sentimentos gritavam-lhe bem alto, sem decoro: COMO VOCÊ PODE SER TÃO OBTUSA?
Cansaço, sua alma em eterno desassossego, quando finalmente parecia que ia voltar ao estado de paz solitária, ficou sabendo mais. E naquele momento cruel, queria muito ser ignorante de novo. Ignorar a felicidade do outro. E outro sentimento, esse mesquinho, esse infantilizado e mal, detonou o resto de sua sanidade: por que ele conseguiu seguir em frente e eu não? Não que houvesse amor ou ilusão nela, não, tudo já fora por água abaixo, mas afinal essa sensação eterna de chateamento, de perda, de vazio... como se o amor que ela tivesse criado e plantando dentro do peito, tivesse sido arrancado com crueldade. Era quase uma impressão física, uma dor na altura do peito, uma incessante falta de ar. Ele não só seguira em frente como também a substituíra por uma pobre coitada. Pobre coitada, porque, quem era aquele homem com que ela dormira tantas noites? Quem era ele na verdade? Como alguém pode mudar tão rapidamente? Por que aquela outra, recém-chegada, merecia ganhar tão rapidamente tudo que ela lutara por anos e anos? Uma injustiça. Sentiu-se mais vazia ainda, sentiu-se mais usada, mais tola e aquilo a sufocava mais e mais.  Sentia vontade de gritar, gritar com ele, na cara dele, que ele era um merda, um mentiroso! Um grande mentiroso! Quem é você? Quem foi que eu dia amei, quem foi que um dia pensei em passar o resto dos meus dias ao lado, que sacrifiquei tanto, que suportei tanto! Quem é você?!
O grito morria na garganta, nos pesadelos que infestavam suas noites. O grito morria na dor, na dor de não conhecer mais a ele, de não conhecer mais aos próprios sentimentos, que sua época mais feliz era também a mais nebulosa, contaminada por dúvidas, desnudada por verdades tristes e mortificantes. E não gritaria na cara dele, não compartilharia com ele seus sentimentos mais negros, suas aflições. Jamais. Havia ainda em si um resto de uma conduta limpa, de um orgulho protetor. Ainda que aquelas coisas imundas que sentia lhe dilacerassem o peito e a pusessem louca, nunca deixaria que ele soubesse. Nunca diria uma palavra de sua dor, de sua quase morte, porque haveria de nascer de novo, melhor. Nunca descer do salto, nunca dar o braço a torcer. Por mais que a torturasse, por mais que às vezes a frustração se confundisse com ódio homicida, ela sabia que tudo aquilo era passado. E estava sendo enterrado. Aos poucos. A imagem de dias felizes sumiria aos poucos. A ferida cicatrizaria, não sem agonia, sem sangrar, mas fecharia e seria uma linha esbranquiçada no tecido sentimental. Estaria ali, para sempre lembrá-la do que foi feito e não deveria jamais ser repetido. A entrega dissoluta de seu coração a um ideal que andava. Nunca fechar os olhos tão fortemente que não se consiga mais abri-los. E finalmente, confiar em seus instintos. Eles sempre lhe disseram, em sussurros sufocados que havia algo errado ali. Algo que não ia acabar bem.
E por não conseguir dizer tudo isso, simplesmente não achar palavras em seu universo para expressar o que havia no seu coração moribundo, é que essa mulher que vivia de palavras se rendeu a primeira forma de expressão que conheceu: tão pura, tão sincera, que seria impossível colocá-las no papel ou compartilhá-las de forma diferente do que ela fez: chorou. O pranto amargo que queria dizer que sofria, mas estava cansada de sofrer. Cansada de alimentar a própria miséria. Chorou, chorou e quando terminou, estava liberta.  E não tinha mais nada a dizer sobre o assunto. Nunca mais. 

4.8.12

Pyromaniac


Pyromaniac 



Seus pensamentos estavam confusos e nebulosos. Eles já o eram costumeiramente, sem dúvidas, mas agora eram ainda mais. O que estava fazendo mesmo? Quem estava fazendo aquilo mesmo? Por que estava fazendo, afinal? Os pensamentos tinham inicio, sim, conseguia iniciar uma ideia, mas eles não se concluíam, ficavam perdidos, logo algo que parecia mais importante os interrompia, aquela linha tênue de raciocínio.
Quando se deu por desperta deste turbilhão de questionamentos, viu claramente suas mãos, as suas mãos, soltando o fósforo acesso em direção a uma generosa poça de álcool. Sem demora começou o fogo, aquele laranja demoníaco, tremulando com vida própria. Fogo, fogo! Fogo dentro de sua casa, dentro do seu quarto! Dentro dos confins de sua mente... Assustou-se, sem entender direito o que acontecia, assustou-se ainda mais por não saber o que deveria fazer a partir daquele momento. Em um instinto, saiu do quarto, apressada e foi ao próximo. Colocou-se a frente da janela aberta, aterrorizada, dando as costas para aquele pesadelo. Mais por não conseguir pensar direito que por causa de qualquer outra coisa. Ouviu o crepitar petulante e modesto das recém-criadas chamas. Deviam ser as vozes. Só poderia ser coisa delas.
Os pensamentos começaram a clarear. As vozes. Sentiu o cheiro áspero da fumaça começando a se espalhar pelos cômodos. O som do fogo crescendo. Desejou poder rezar, mas não se lembrava das palavras. Pai nosso que estas nos céus... o resto não vinha facilmente. Não ficou muito chateada com isso, até porque duvidava que Ele a ouviria. As vozes. Daria atenção para ela agora? Sentia-se esquecida por Ele, relembrando flashs amargos. Sentiu-se por muito tempo amaldiçoada, na verdade.
As vozes. O peso do odor da fumaça se intensificava e estava bem ali na janela escancarada, o céu dolorosamente azul. Um céu que lembrava liberdade. Mas se o céu inspirava essa liberdade e Ele morava lá no alto, não haveria lugar para ela. As vozes que ressonavam em sua cabeça. O médico dizia que elas não existiam. Mas como não? Eram claras, vorazes e incansáveis. Diziam-lhe coisas horríveis. Eram ruins e as pessoas que as pronunciavam deveriam ser ainda piores. Que tipo de pessoa boa ouve tais coisas? Pior, se aqueles médicos de rostos duros e atitudes pouco amigáveis tivessem razão, elas de fato não existissem, que tipo pessoa era ela? O tipo de pessoa que merecia muito bem o que estava prestes a acontecer. 
Forçou um pouco a memória enfraquecida, tentando se lembrar da primeira vez que as ouviu. Só veio o medo à memória, aquele medo mordaz, ao perceber que elas não vinham de lugar nenhum. De ninguém. Vivo, ao menos. Seriam fantasmas? Teria enlouquecido? Contudo, no começo, elas eram gentis. Conversavam coisas bobas, faziam piadas inocentes. Era bom. Alguém para lhe fazer companhia, enfim. Alguém com quem conseguia travar uma conversa sem olhares recriminatórios. Sem desprezo, sem tédio, com muita paciência. Se fosse um fantasma, seria um do tipo bom. Achou um amigo que a entendia, sem julgá-la.
O cheiro de borracha queimando lentamente começou a irritar seus olhos. Mas, do nada, houve outras vozes. Tinham um som etéreo, metálico, rouco e mau. Causavam-lhe arrepios. E diziam coisas ruins. Sobre os outros. Sobre sua família. Palavras ruins e violentas. Muito violentas. E coisas ainda mais terríveis sobre ela. Como era fraca, inútil, um peso. Como todo mundo não sentiria sua falta se morresse. Como seria bom se aquela faca cortasse seus pulsos, a sensação do sangue quente escorrendo deveria ser muito boa. Quase prazerosa. Ou pular daquela janela. A sensação de não ter peso. De não ser um peso. Vencer. Voar. Deixar aquele mundo injusto. Olhe como as pessoas olham para você, com desprezo, nojo, pena. Um verme.
Um dia não aguentou mais. Sentiu a alma sair do corpo. Vazio. Escuridão e silêncio. Uma paz sinistra. O silêncio, todavia, era bom, sem fim. Sem peso. Sem medo. Liberta. Havia morrido?
Foi quando aquele médico lhe perguntou se ela ouvia vozes. Como elas eram. O que diziam. Ela as conhecia? Você é esquizofrênica. Tome essas pílulas todos os dias. Uma pílula laranja. Um laranja intenso, de doer os olhos. Virou-se e reviveu aquele laranja em forma de chamas, que lambiam as paredes do corredor central. Eram bonitas até. A fumaça se adensou. É claro. Isso tudo era coisa das vozes. Saiu da janela e se sentou, abraçando os joelhos, no canto mais distante da porta. Será que conseguiria lembrar-se da oração inteira? Mais ainda nada adiantaria. Com vozes ou sem elas, estava condenada. O indizível, ela estava fazendo. Ela. Fora sua mão que riscou o fósforo. Talvez o fogo a purgasse. Talvez esta fosse sua última chance de ser salva.
Os comprimidinhos laranjas fizeram muito bem seu papel. Vivia naquele silêncio. Aquelas vozes horripilantes haviam sumido. Quase perdera sua vida, se perdera na escuridão, mas tinha a chance de recomeçar. Isto é, se conseguisse se acostumar com os dedos acusativos e os olhares desconfiados. Esquizofrenia? Que quer dizer? Quer dizer que você é doida. Doidinha de pedra. Contudo, o silêncio dentro de sua cabeça era melhor que tudo. Mais importante que qualquer outra coisa. Podia até aguentar todos os olhares pesados. Era só desviá-los.
Sentia agora o calor do incêndio invadir o quarto. Invadir seu corpo debilitado. Sua mente instável. Seu instinto mais básico e visceral gritava para que fugisse. Que lutasse. Corra! Pule pela janela! Grite! Lute! Lute... lute pelo menos mais um pouco. Contudo, continuou imóvel, não tinha mais forças. Desde o primeiro dia que elas voltaram. Os sons do inferno. Como aquelas labaredas, destruindo tudo que tocavam. Cada pedaço de sua vida que nem valia a pena. O que sobrara dela, se algum dia fora alguma coisa realmente? Restava o receio paranoico de ouvi-las, de contar para alguém. E se a trancafiassem em um daqueles lugares horríveis dos quais ouvira falar? Sozinha com seus próprios demônios? Sujos, solitários, onde só lhe restaria a dor, dor... Sobrava a dor. Tudo que restava dela e nela era a dor. Estava sendo consumida por dentro, por todas aquelas sensações grotescas. E se o fogo a consumisse por fora, aquela carcaça vil que apodrecia enquanto respirava, estaria livre.
Levantou-se e fechou a janela. Deixou sua última chance para trás. E onde estavam agora aquelas malditas vozes? Na hora mais difícil, elas não poderiam trazer algum conforto? De não ter que padecer sozinha mais uma vez? Estava finalmente se entregando aos desejos maus, aos conselhos incansáveis. Mas não, se tivesse que sofrer, sentir as chamas se alimentarem dela e de sua alma pútrida, teria que ser só. Será que Ele, que fez por ignorá-la a vida toda, veria isso como seu último sacrifício e finalmente conseguiria a paz e o perdão? Não, não. Deus castiga os suicidas. Eles vão para um lugar ruim. Um lugar que parecia sua vida. Vazia. Amedrontada. Triste. Escura. O silêncio eterno. Mas pensando bem, um pouco de silêncio não lhe faria mal...
Voltou para o seu canto isolado. Agora era questão de tempo. Se tivesse sorte, uma palavra que não conhecia, desmaiaria por causa da fumaça densa. Era difícil de respirar. Prenderia o grito de uma vida inteira por mais alguns minutos. Via as chamas cada vez mais próximas, o calor incandescente queimando-lhe o rosto, fazendo arder suas narinas. O ar, o ar faltava-lhe... o ar. Não era agora que sua vida inteira.. devia lhe passar pelos olhos? Como um filme... onde... seus poucos momentos felizes...estariam em alto contraste? Era difícil pensar... por que não lutara mais? Por que... não... correra? Covarde... covarde...covarde...seu fim...você...merece. Olha, não é que... elas voltaram? As vozes... vieram me buscar... vão me levar para o.... inferno? 

30.5.12

Algo Diferente




Algo diferente

_ Vamos fazer uma loucura?
Quando se deu por si novamente, já ouvia a buzina à porta de casa. Levantou-se em corpo e consciência, colocou a pequena mochila nas costas e partiu.
Chovia, garoa pesada, daquelas que você crê que não molha nada, mas quando olha suas roupas, estão salpicadas por muitos pontinhos brilhantes e gelados. Apressou então o passo e entrou no veículo. Sua primeira impressão foi do perfume doce e floral que o envolveu de pronto e em seguida seus olhos também foram capturados pela criaturinha ousada ao volante. A cor de seus cabelos incendiava seu rosto paradoxalmente infantil e sensual. Todavia, não era a beleza que o atraia: era sua força e vitalidade. Dois imãs.
Vários quilômetros foram rodados, entremeados por conversas quase formais. Havia aquela estranha tensão entre os dois, só contornada por um inesgotável bom humor. Entre um espaço de silêncio desconfortável e outro, ele admirava a paisagem, que tinha a beleza imóvel dos dias frios e melancólicos. Contudo, aquela vista não o deixava entristecido, mas acalmava seu corpo que se encontrava possuído por uma ansiedade febril que tornava quase que impossível a tarefa de se manter sentado pacientemente. Ela, impassível, mantinha o bom ritmo da conversa, dirigindo atenta e tranquilamente.
_ Que tal aqui?
_ Tem uma cara boa. Será que é caro?
_ Olha lá; eu fico aqui de pilota de fuga.
Não agradados pelas condições, andaram um pouco mais.
_ Ali, olha, ali!
_ Hum... parece ideal. Vamos.
_ Rápido, antes que fiquemos encharcados!
_ Não tem problema, tomamos algo quente...
_Tipo um banho?
_ Eu ia sugerir um chá, mas um banho deve servir...
Sorriram-se com cumplicidade.

Entraram no minúsculo e rústico quarto do hotelzinho. Colocaram suas poucas bagagens em cima da cama de casal, que pelo menos, era espaçosa e tinha ares de confortável.
Ele se jogou em seguida para testá-la. A jovem foi checar as condições do banheiro.
_ A cama é ótima! Será bem útil...
_ O banheiro também serve. Não é o mais limpo e confortável e talvez tenhamos um banho não tão quente como gostaríamos...
A voz dela parecia vir de longe, muito longe. O dia morria através das cortinas empoeiradas, deixando todo o quarto mergulhado em uma penumbra mortiça. A chuva diminuíra e só se escutava um restinho caindo dos telhados. Aquele cenário lhe pareceu extremamente sensual. Sentiu os pelos da nuca arrepiarem pela expectativa. Então ela surgiu, apoiada no batente da porta do banheiro, aquele sorriso quase tímido no rosto. Deu alguns passos em direção ao centro do quarto, deslizando pela escuridão crescente. Ele levantou, enlouquecido por aquele momento. Puxou-a pela cintura, para bem perto dele e começou a beijá-la intensamente, apertando-a contra ele com força. Ela retribuía, entregue, solícita. Quando já estavam quase sem ar, em meio a beijos sôfregos que ele praticamente impunha a ela, o rapaz começou a tirar a blusa. Ela o afastou de leve, com muita delicadeza e esperou o ar voltar um pouco. Tornou a se aproximar e segurou em sua cintura, mantendo aquele olhar firme e terno. Aproximou-se de seu ouvido:
_Vamos com calma... hoje não temos pressa, certo?
E o beijou com carinho, mas aquele beijo delicado o deixava ainda mais excitado. Sentia-se tão inexperiente perto dela, que teve medo, outrora, de que chegassem a aquele momento. Na verdade, o que lhe preocupava era a segurança e a tranquilidade com que ela lidava com tudo aquilo. Ele se sentia um pouco como um adolescente à mercê de hormônios e ela parecia mesmo que com aquele jeito quase submisso, conduzia toda a situação, com elegância. Sentia que ela poderia fazer dele o que bem entendesse. Contudo, naquela altura do campeonato, tanto fazia.
As mãos macias e pequenas daquela jovem escorregavam pelas costas dele, fazendo com que cada fio de cabelo de seu corpo se eriçasse, os suspiros profundos que vez em quando ela soltava perto de seus ouvidos eram lancinantes. Ele tentava se segurar, para não jogá-la contra a cama com violência, ainda mais quando seus dedos deslizavam em seu couro cabeludo, vigorosamente. Ele, então, sem desgrudar seus lábios dos dela, a puxou, agora com mais suavidade, em direção à cama e se sentou, deixando-a  apoiada em seu corpo e, com um pouco de autocontrole, levantou a blusa da jovem delicadamente. A pele estava gelada ao toque. Achou que fosse se derreter em êxtase; a última coisa que viu, antes da escuridão os engolir por completo foi que ela o olhava de maneira diferente. Por um momento, parou tudo que estava fazendo e pensando para olhar bem para aquele rosto semiobscurecido pelas sombras: sua mandíbula tremia de leve. E não era de frio. Em seus olhos também jurou ter visto um lampejo daquilo: era medo. Sorriu, satisfeito quando algo mexeu dentro de seu peito. Estavam na mesma sintonia. Puxou mais uma vez o corpo dela para si e foram cobertos pela noite.

Quando finalmente voltou a pensar direito, as luzes estavam acessas e seus olhos se abriam com dificuldade. O espaço onde ela deveria estar na cama encontrava-se vazio ao tato.
_ Ei, bela adormecida. Dormiu bem?
_ Bela adormecida é o ca...
Ela estava sentada à pequena mesa de canto, com uma taça de vinho tinto entre os dedos.  Os cabelos estavam bagunçados e caiam em seus ombros muito brancos, quase nus. Aquela imagem fez seu corpo acabar de despertar.
_Quer?
_Por favor.
A jovem lhe entregou uma taça e voltou a se sentar, distante. Ele não questionou e tentou apreciar o vinho. Tinha um gosto refinado que combinava com ela.
_De onde surgiu tudo isso?
_Trouxe em minha mala mágica.
_O que mais tem nela?
_Oh, algumas coisas ainda. É cedo.
Sorriram-se, com muito mais cumplicidade que há poucas horas.
_Você é do tipo de mulher que todo cara quer, né?
_Hahaha, na teoria sim...
Seu riso era ligeiramente amargo. Como se aquilo fosse algum tipo de ironia cruel.
_Como é que...
_ Eu estou sozinha ainda?
_É.
_ Responda você.
_ É diferente... são as circunstâncias...
_Eu sei. Vai me jurar que quando as circunstâncias mudarem, estaremos juntos para todo o sempre?
Ele engoliu seco. Que cilada!
_ É brincadeira, meu querido. O que nós temos é diferente, não é?
_ É sim..
Calaram-se. Aquele desconforto. Aqueles assuntos que não deveriam ser permitidos. Mas já havia começado. E como juntar os cacos de um vidro já partido?
_ O que você quer de mim?
_ Mais...
_ Não, é sério. O que você quer de mim? Você disse para eu jurar...
_Você não faria nada isso.
_ E por que não?
_ Você não quer me enganar. E nem precisa.
_ Mas isso é o que eu quero ou não quero. Eu perguntei o que você quer.
_ E isso interessa?
_ Sim, é lógico.
_ Por quê?
Ele a chamou com um gesto. Ela deixou a taça sobre a mesa e se dirigiu relutante para a cama. Tentou manter-se distante, mas ele a puxou para si com força. Demorou-se olhando para ela. Ali estava, mais claro que nunca: medo.
_ Você tem medo de se machucar?
_ Não...
_ Então... do que você tem medo?
_ Eu não sei o que quero da vida, sinceramente. Normalmente eu sei, mas... agora eu tenho essa coisa dentro de mim, irrequieta.
_ Você tem medo de... errar?
_ Não.
_ Do que então?
_ Eu não quero ser injusta. Não quero enganar ninguém. Eu não posso.
_ Por que não pode?
_ Porque eu me ser recuso a ser cruel com alguém que gosto...
_ Nós temos algo diferente mesmo, não é? E é bom...
_ Sim, temos... é bom sim. Como este momento...
_Podemos então...
_ Apague as luzes.
 Riram-se, enquanto se embrenhavam naquela noite que não deveria ter fim.