23.12.08

_ Last days....

2008 está chegando ao fim e para fechá-lo bem, postarei meu conto "campeão".
Espero que vocês gostem.

Podia se esquecer de quem era, mas delas, nunca.

A qualquer preço.

Deu-lhe as costas, mas sentiu seu antebraço ser agarrado com vigor pelas mãos trêmulas e decididas dela. Os dedos esqueléticos, de unhas roídas exaustivamente, queriam penetrar em sua carne, arrancar-lhe sangue, queriam ser ouvidos.

_ A qualquer preço, me ouviu bem?

Não respondeu, apenas acenou com a cabeça afirmativamente, querendo logo livrar seus olhos dos dela, que eram um mar negro e apavorante. Mas não houve tempo para escapar do que ele viu, a alma da mulher ali exposta, desesperada, suja como a lama que agora grudava em seus sapatos velhos. E ele sentiu aquela coisa pegajosa invadi-lo, inundando a própria alma e a contaminando, começou a sentir-se como ela, a ser ela. Porém se movia depressa e respirando fundo, afastou tudo aquilo que ameaçava tomar conta, sem compaixão, de seu espírito. Sentia-se protegido por uma sólida armadura, impenetrável, não podia deixar-se abalar. Tinha que ser forte, manter-se firme. Como ela disse, a qualquer preço.

O carro parecia não chegar nunca, estava mergulhado em um breu sem fim de uma esquina. Sentia seus ossos gelados como a ponta do nariz torto, devia ter se agasalhado melhor. No silêncio do abandono daquelas ruas imundas, ouvia ainda as palavras da mulher, pareciam ainda frescas, recém despejadas por aqueles lábios assustados. Elas se repetiam e pareciam ter vida própria, um significado profundo, mais profundo que ele mesmo poderia ser. A sonoridade delas era pesada, era um golpe certeiro na boca do estômago, uma sentença cruelmente apresentada. Estavam condenados.  

Enfiou-se sem jeito no carrinho velho, trancou-se lá dentro e tentou acalmar-se. O que mais incomodava não era toda conversa que viera antes, mas aquelas palavras doloridas. A qualquer preço, os dedos esmagando sua pele marcada pelo sol, implorando, eles imploraram, que levasse a sério como nunca tinha levado nada naquela vida miserável. Colocou a chave no contato, e deu a partida. Queria sair logo daquele lugar sinistro, aquela ruela estreita, sem o barulho da cidade para lhe dar o conforto de estar aconchegado pela multidão de estranhos desinteressados. Sentia aos poucos o coração acalmar-se dentro do peito magro, o sangue correr mais lentamente, a respiração quase se estabilizar.

O carro ia rodando lentamente, a luz do farol violando a escuridão do bairro. Tudo lá tinha o rosto do esquecimento e da pobreza, as casas abandonadas, cinzentas, as janelas que observavam por olhos encardidos e quebrados, o chão úmido e o cheiro... era um cheiro hediondo, de presságio, de crueldade... Mas ele sabia que aquele aroma perdido entre suas conchas nasais era dele, do corpo dele, que não era nem mais digno ou mais limpo que aquelas ruelas sinistras e esquecidas por Deus.

Achou que tinha se perdido, nunca avistava as luzes urbanas. Criou coragem em uma curva e espiou com o canto dos olhos o porta-luvas. Sentiu um arrepio correr e partir seu corpo ao meio. Ouviu o barulho de sua armadura rachando, era uma pequena rachadura, mas ela estava lá, abrindo-se devagar, devagar. Concentrou-se, devia ter virado na outra esquerda, tinha que voltar. Pare de rachar, fique forte, preciso de equilíbrio, de sangue frio, pensava rápido enquanto tentava achar o caminho. Estava tudo em suas mãos e agora tinha que ir até o final, a qualquer preço.

Enfim, começou a perceber a mudança no cenário. Um poste ou outro com iluminação apareceu e ele agradeceu. As casas agora estavam ocupadas e apesar da humilde aparência, emanavam vida e o som de uma televisão excessivamente alta invadiu o carro pela janela agora aberta. Precisava deixar o ar poluído da cidade purificar o carro. Esfregou os olhos, tinha sono e o corpo estava cansado. Imaginou como estaria sua aparência, a dela era péssima! Tinha emagrecido uns tantos quilos, seus olhos estavam enterrados nas órbitas, suas clavículas saltavam mais do que nunca, nem parecia a mesma mulher. E apesar de debilitada, tanta força tinha nas palavras... maldita, era uma maldita! E ele também seria. Seriam malditos e não podiam fazer mais nada a não ser seguir, sem questionar. Olhou de novo para o porta-luvas, engoliu seco. Chegaria logo, precisava de um banho bem frio, gelado, para acordar o corpo e assustar a alma. Mas estava acostumado, quantas vezes a luz não fora cortada?

O sinal fechou. Vermelho. Encarou de frente aquela luz. Vermelho era de culpa, uma culpa intensa e delirante. Vibrava, tinha vida como aquelas palavras, vibravam juntos e partiam, partiam aos poucos sua proteção, sentia a pele trincar e sentia medo, o medo embrenhando-se sorrateiro por aquela pequena fresta. Fechou os olhos com muita força, não posso ceder, não vou titubear, coragem, homem, coragem! A buzina trouxe-lhe de volta. Abriu os olhos e não havia mais vermelho, só um verde desbotado. Seguir, tinha que seguir a qualquer preço.

Um banho frio, é o que precisava. Tentava se concentrar, lembrar do banheiro pequeno e mofado. E um copo cheio de café sem açúcar. Precisava muito de cafeína, o negro fervente pelo vidro opaco, os copos de lá eram velhos e tinham cheiro de sabão barato. Mas não se deitaria na cama, essa noite não se sujaria naqueles lençóis que nem se lembravam que um dia foram brancos. O porta-luvas o encarava silencioso ainda. Fizera de tudo naquela vida sórdida, mas o que lhe era exigido sugava suas energias por completo, era demais para ele e para suas mãos maculadas.

O hotel estava perto. O bar da esquina estava cheio de gente. Dois homens pareciam querer começar uma briga, mas a maioria estava entretida em uma partida de sinuca. Queria uma cerveja, bem gelada, trincando de gelada, mas não era hora daquilo. Era hora de enfrentar. Fazer o que tinha que tinha que ser feito a qualquer preço. Enquanto observava o letreiro desbotado de letras redondas e azuis, lembrava que se aquela mulher tinha jeito para alguma coisa, era com as palavras. De todas, escolheu as melhores para machucá-lo, obrigá-lo e relembrá-lo. Podia se esquecer de quem era, mas delas, nunca.

Estacionou com certa dificuldade, era um estacionamento absurdamente apertado e as vagas deveriam ter sido feitas para meio carro, não era possível. Agora que o motor parara de roncar, não sabia mais como se sentia. Aliás, não sabia se era capaz de sentir. Não conseguia imaginar mais nada, nem o café, nem o banho, nem o rosto cadavérico e aterrorizado dela e tampouco algumas horas dali em diante. Pela primeira vez teve a sensação de realmente não saber o que o esperava quando abrisse aquela porta, era como se tivesse que morrer para deixar aquele carro e o corpo caminharia com outra alma. Mas era bom não sentir e era melhor ainda não tentar prever. Sentia-se leve, leve como se estivesse vazio de fato.

Ia abandonar o carro, arrastar sua carcaça que julgava abandonada até o quarto no terceiro andar e voltaria em breve. O porta-luvas ainda lhe deu uma leve olhadela, mas não seria preciso lembrá-lo, estava consciente e firme de suas obrigações cruéis. Porém, olhou no retrovisor, costume antigo de checar se alguém o perseguia. Naquele reflexo viu seus olhos, velhos e emoldurados por rugas e pior, viu sua alma e foi isso que fez com que seu escudo se estilhaçasse sem piedade, estava nu e desprotegido, exposto para si mesmo e aquilo era demais até para um homem como ele. E como se não bastasse enxergar suas próprias entranhas que tinham a cor do inferno, havia mais e era muito mais horrendo, era ela e sua alma que lembravam um rio em uma noite sem luar, não podia haver luz em uma coisa daquelas e ela e seu espírito estavam em tudo nele, até em suas rugas, em cada poro, em cada cicatriz. Estava dominado e infectado, condenado, morto, enterrado. Apoiou seus cotovelos ossudos no volante e começou a chorar, como nunca chorara antes. Seu soluçar era de desespero, era o desespero líquido e límpido, lágrimas que não queriam e não podiam cessar. Era uma criança que já não era inocente e chorava copiosamente, de dor, uma dor que não era física, mas nada podia doer como aquilo. E chorava na tentativa de limpar, de não ser mais aquela escuridão que vira, de livrar-se da presença dela, haveria de sair de seu ser. A qualquer preço.



Até, bom fim de ano!

Próximo conto...?

27.4.08

_ Ele era a personificação agora bizarramente manca dos meus demônios mais perversos...

Gostei muito do resultado desse conto. Ficou com a velocidade que eu queria, a intensidade.... Espero que gostem e não vou me estender em comentários. Mas esse eu preciso fazer:

"Quem inventou o inferno não conhecia a consciência"


Reencontro


Caminhava com certa dificuldade, desviando das pessoas apressadas como eu e de seus guarda-chuvas ameaçadores, um quase havia feito um estrago no meu olho direito na esquina que tinha acabado de virar. Meu passo era rápido, pois infelizmente, não tinha uma arma daquelas para me proteger, meu cabelo recebia diretamente as gotas minúsculas de chuva daquele dezembro úmido. E como não podia ser diferente, corria também contra o tempo, sempre atrasada. Porém, minha mente seguia um ritmo diferente, tentando controlar a ansiedade do encontro ao qual me dirigia e meus olhos tentavam registrar as mudanças sutis daquelas calçadas. Ainda me incomodava o fato de ter me esquecido o caminho que aquele ônibus tão familiar fazia! Pois eu tenho um medo tolo de esquecer esses detalhes cotidianos, tão importantes para mim, como se, se eu os esquecesse, estivesse esquecendo também do meu passado que, por mais cruel que seja, é minha vida, parte de mim... em minha mente perturbada, esquecer do passado é deixá-lo morrer e nessa morte simbólica vai um pouco de mim também. Lembrar das coisas é mantê-las vivas, acho eu. Ironicamente mais tarde, essa mesma mente perturbada experimentaria a sensação contraditória de querer deixar certos detalhes do passado morrerem e não participarem mais de mim. Porque, por mais que os erros ensinem, pois todo erro ensina e tolo daquele que não aprende, doem absurdamente. Ainda mais quando andam.
Quando finalmente alcancei a entrada do metrô, deslizei os dedos pelos meus cabelos salpicados de chuva, tentei arrumá-los, mas acredito que só piorei sua aparência. A fila para comprar bilhetes estava maior do que de costume, aliás, o subterrâneo parecia tão movimentado e cheio de vida quanto a superfície. Lembranças, lembranças... as paredes daquela estação estavam impregnadas delas! Quisera eu ter mais tempo para me encostar em algum canto e observar aquele lugar e as pessoas. Quantas vezes não fizera isso, sempre a espera? Mas naquele dia eu tinha pressa, muita pressa.
Peguei a fila, contornando algumas pessoas. Pelo canto dos olhos, reparei em alguém, com uma guitarra pendurada nos ombros, os cabelos de aspecto ralo encharcados, bem mais que os meus pude observar, todo trajado de preto. Esse alguém olhava constantemente em minha direção e me lembro claramente de olhar para trás para checar para quem aquele estranho olhava tão atentamente. Depois de um tempo, a fila sempre andando devagar, percebi que eu estava realmente sendo observada por ele. E depois que me atrevi a olhá-lo nos olhos, entendi por que. Afinal, ele não era um completo estranho. Definitivamente.
Então, as engrenagens de meu cérebro enferrujado pela chuva começaram a funcionar e como por vingança do que a pouco pensara dela, minha memória golpeou-me com sua costumeira eficácia e habilidade. Uns dois anos atrás, mais ou menos isso. O mesmo lugar, uma outra fila com outras pessoas, um outro dia que brilhava lá fora. Fazia calor, como me esquecer? Eu, ansiosa, esperava minha vez de comprar o bilhete. Quando um olhar cruzou com o meu. Os olhos eram os mesmo que eu evitava agora, fechando o casaco e me escondendo por trás do alto rapaz que estava na minha frente. Mas não o olhar. Naquele passado não tão distante, eram olhares curiosos que trocamos, de totais desconhecidos analisando um ao outro. Hoje, o dele era de incredulidade. O meu, devia ser de assombro, aos poucos sendo substituídos por lampejos muito claros de dor.
Ele comprou sua passagem e se virou ainda umas vezes pra me ver e eu sempre me escondendo. Mas quando tirei a nota amassada do bolso, recolhi meu bilhete e umas poucas moedas de troco que larguei apressadamente no fundo de minha mochila, percebi que minha curiosidade era maior que meu medo. Apertei o passo e o segui. Depois, a passos calmos, procurei a figura que mais parecia ter saído do inferno, do meu inferno pessoal, e logo o localizei. De relance, notei um quê de perturbação nos seus olhos verdes, aqueles malditos. Fora eu o motivo de toda aquela agitação ou ele sempre fora meio perturbado mesmo? Que eu sabia dele? Não muito, apenas aquilo que nossa breve conversa me permitia saber. Conservei uma distância segura, mas cuidei de tomar o mesmo vagão que ele. Entrei, sentei-me e ele ficou de pé. Porém, houve tempo de perceber que ele não andava mais como outrora. Estava mancando muito, algum problema grave na perna esquerda. E sem a mínima cerimônia, pus-me a observá-lo. Como tinha mudado! Quando nos conhecemos, ele era apenas um menino magrelo com um gosto musical duvidoso parecido com o meu. Ele gostava de Tchaikovsky. Dei um sorriso e olhei pra baixo, procurando algum lugar pra esconder meu rosto. Meu corpo. Minha alma inteira, pois eu tinha repulsa dela. Senti uma golfada de vergonha subir por minha garganta. Ele, ali na minha frente. Um fantasma de carne e osso que me olhava, com seus olhos verdes e com um toque de loucura, estralava os dedos, ansioso, e eu queria lhe gritar que o odiava muito! Seu nome marcado a ferro e fogo na minha memória, por que, cérebro maldito, simplesmente não nos deixava esquecer?! Por que eu simplesmente não podia esquecer seus traços, seus olhos que um dia me levaram ao crime, o que eu tinha feito? Ele era a personificação agora bizarramente manca dos meus demônios mais perversos, do meu erro imperdoável, era a culpa ambulante a me acusar, apontando seu dedo medúsico bem no meio dos meus olhos e...
Era só um jovem parado na minha frente, que insistia em me encarar, procurando um olhar de curiosidade e de reconhecimento. Queria falar comigo. Compartilhávamos desse desejo. Mas eu com certeza não o exteriorizei, apesar de por dentro estar em guerra, lágrimas e sangue espalhados desordenadamente em meu coração e mente, por fora era a paz e a arrogância em pessoa. Mesmo assim, o jovem agora com traços de velho, sentou-se ao meu lado. Respirei fundo e quis olhá-lo bem no fundo dos olhos, mas continuei na minha representação de não reconhecê-lo e de não estar sofrendo absurdamente. Lado a lado com meu pecado mortal. Podia ouvi-lo respirar. E de repente quis saber o que tinha acontecido com ele. Algum acidente de moto? Lembro-me bem de seu pai ter uma moto...
Acidente foi termos nossos caminhos cruzados naquela primeira vez, uma tarde com ar de inocente. Agora era apenas minha memória cruel jogando-me na cara que o passado nunca nos abandona. Que meu travesseiro nunca seria macio como antes. E sentada ali, observei a porta do vagão. E lembrei como começamos a conversar. Naquele fatídico dia, éramos três. Aliás, lembrar desse outro alguém me levou a uma lembrança mais profunda e ainda mais dolorosa, que tentei evitar, mas eu simplesmente não sabia perdoar. Ouvi aquela voz e aquelas palavras novamente, queimando meus ouvidos, destruindo meu coração, fadando-me a infelicidade. Meus olhos se encheram de lágrimas, palavras duras, tão duras! E infelizmente, absurdamente verdadeiras e eu daria tudo para ser ignorante e discordar delas! Discretamente observei suas mãos. Pálidas, magras, agitadas. Quis tocá-las e chamar-lhe pelo nome. Talvez elas se desfizessem, tornar-se-iam pó e eu acordaria no conforto da minha cama, era só um pesadelo! Pesadelo ou não, não havia resquício algum de força em meu corpo ou alma e permaneci estática, apenas esperando que ele rompesse o silêncio e me libertasse daquela alucinante tortura silenciosa de auto punição que eu me encontrava. Chegamos a uma estação e ele pulou do banco, saiu mancando, seu passo agora triste e doloroso...
Ah, caro amigo... não foi só você que mudou, não foi só você ficou mutilado desde do nosso último encontro! Pois, eu ando normalmente, mas minha alma, essa tem os passos mais pesados que os seus, a cadência mais mórbida que a sua, o caminho mais triste que o seu, pois esse lampejo de inquietude dos seus olhos habita os meus todos os condenados dias que tenho que viver!
Ele ainda olhou-me do alto da escada rolante, entre as tantas outras pessoas tão alheias a nossa dor. E dos meus lábios seu nome ainda escapou, sendo o último suspiro de uma alma amaldiçoada por seus pecados que andam entristecidos pelas ruas dessa cidade.

____________

Próximo Conto: a decidir.

Até.



6.4.08

_ Pro diabo com o silêncio quando tudo que se espera é uma palavra, uma reação!

O final desse conto "bonitinho". E termino com essa frase, que eu sei o quanto é verdadeira. Espero que gostem.

Fora de Estação.

Parte Final.


E a árvore a observava com muitos olhos amarelados. Enrubesceu, estava ficando velha mesmo ou apenas lutava para esconder qualquer coisa que pudesse fazê-la voltar atrás? Não era covarde, só não queria errar!

_ Você vai conseguir deitar a cabeça no travesseiro sabendo que deixou as coisas do jeito que estavam por medo de mandar tudo pro inferno e começar de novo?

_ Por que você acha que eu quero fazer isso? Talvez eu só queira continuar do jeito que estou, seguir os planos, talvez eu esteja feliz do jeito que estou! Aliás, por que você acha que eu menti?

_Olhe para você! Esta inquieta demais, seu sorriso tem uma tristeza, uma inquietação! Aposto que essas olheiras... você nem deve estar dormindo direito pensando nisso!

_ Já disse, é o estresse!

_ Você me perguntou se as flores têm perfume.

_ E daí? _ Ângela tremia, tentava ficar calma, pelo menos demonstrar que estava. E agora aquela pergunta estranha, onde ele estava tentando chegar?

_ Como eu poderia saber, se a única coisa que eu me lembro é do seu perfume? Do calor do seu abraço e de seus lábios tão doces? Droga, Ângela, eu fiz uma pergunta aquele dia e você mentiu porque estava com medo! Simplesmente não posso deixá-la fazer isso de novo! Antes era só uma coisa de adolescente, mas agora é pra valer! Você está com medo de decepcionar as pessoas? Poxa, danem-se elas! E você? Onde fica você essa historia toda, o que você sente realmente? E eu? Como fico, sabendo que você vai ser infeliz ao lado daquele cara? Não, eu respondo sua pergunta, você não sentiu um pingo de saudade dele e tampouco o ama! Era isso que você estava com tanto medo de descobrir?! Pois bem, está aí a verdade!

Olharam-se demoradamente, a respiração de Carlos um pouco alterada, a expressão gelada e pálida de Ângela. Ele esperava apenas uma reação de dela, um grito que fosse, um “vou fazer as coisas do meu jeito dessa vez!” ou um seco “cala a boca, você não faz idéia do que esta falando.”, um tapa, uma crise de choro, qualquer coisa! Menos aquele silêncio, aquela expressão de pedra. Justo eles, que debaixo de árvores como aquela, podiam passar horas em silêncio juntos, sendo felizes! Pro diabo com o silêncio quando tudo que se espera é uma palavra, uma reação!

O alarme do relógio, presente do noivo, tocou. Ângela desprendeu os olhos dos de Carlos, calçou os sapatos e saiu, sem dizer uma palavra, do carro. Carlos, indignado, seguiu-a, tentando manter-se calado, já havia falado demais. Toda aquela eloqüência a troco de nada, fizera papel de tolo e agora teria que encarar aquele homem de jeito sereno, mas tão vil a seus olhos! Para inferno ele e aquela risadinha amena sem energia! Atravessaram a rua, alcançando a calcada coberta de amarelo.

_ Carlos _ Ângela parou, olhando pra cima, onde o céu e a copa da árvore se confundiam, respirando fundo, buscando forças. _ Essas flores ainda têm perfume?

Ele, serenamente, a encarou. Começava a ventar, seus cabelos ganhavam movimento, estava tão linda! Esperando que a partir daquele momento o noivo dela não fosse pontual, puxou-a para perto, olhando no fundo de seus olhos, que demonstravam medo ainda, mas estavam banhados de uma cor que lembravam bastante a coragem. Ela então sorriu, querendo lhe dizer algo, mas sabia muito bem a agora do silêncio. E beijaram-se com a suavidade do perfume de uma flor amarela.

Fim.


E o próximo conto será ...


Reencontro.


Até!





15.3.08

_ E essas flores, têm perfume?


Eu nunca vou saber que flores são essas para falar a verdade!

Fora de Estação.
Pt.3


Jogar conversa fora, você não é disso, pensou Ângela. Abriu mais o vidro do carro. Aquelas flores, teriam perfume? Não se lembrava. Aliás, as tais prendiam sua atenção porque lhe reavivarem a memória, não era verdade? Havia uma árvore igualzinha a ela em algum lugar importante... onde mesmo? Será que estava assim, tão velha para esquecer de coisas tão simples? Pousou as mãos no colo. Observou-as demoradamente. Não, ainda eram mãos jovens, vigorosas, o esmalte discreto de uma mulher madura e bem sucedida e... aquele anel dourado na mão direita. Apertava-lhe o dedo anular agora. Só alguns meses e minha filhinha estará casada, uma mulher formada! Foi assim que lhe disse sua mãe, enquanto servia chá com biscoitos amanteigados. Tinha forma de flores e ursinhos, teve vontade de rir. Biscoitos daqueles para uma mulher como ela! Ah, mãe, tivera vontade de lhe dizer algo, algo que ela não entendera no momento e tão pouco entendia agora, mas engolira aquilo que a perturbava junto com seu chá e biscoitos, com um sorriso de Ah! Está tudo tão bem! Mas não estava, definitivamente. Olhou o relógio novamente, fazia-o com muita freqüência ultimamente, vinte e tanto minutos! Uma eternidade. Virou discretamente o rosto para observar Carlos, o pescoço encostado no banco, os olhos cerrados, as mãos pousadas no assento ao lado do corpo. Não tão velhos assim, não? Seus dedos, lisos e jovens como sempre...
_ Você sentiu falta dele? _ a pergunta pegou-a de surpresa, como se ela própria a tivesse feito. Carlos permanecia de olhos fechados, um raio atrevido de sol dourava-lhe os cabelos bem cuidados.
_ De quem? _ sua voz tinha um quê de “eu não quero falar disso. Aliás, do que estamos falando mesmo?”.
_ Do seu noivo, Ângela.
_ Sim.
_ Tudo bem se você não sentisse. Duas semanas é bem pouca coisa para pessoas duronas como a gente, não é? _ Pois é. _ agradeceu secretamente por Carlos nunca ter aberto os olhos e a olhado profundamente. Não soube se conseguiria mentir nessa situação embaraçosa.
_ Você viu, tem uma daquelas árvores do outro lado da rua. _ Ângela respirou aliviada. Queria dizer obrigada por não continuar com aquele conversa. Já não bastava tanta inquietação que não a deixava dia e noite? _ Na casa da minha mãe havia uma, porém bem mais bonita. Você com certeza se lembra. Mas nunca a vi florescer no inverno.
O tom da conversa era ameno e Ângela viu-se por um instante, totalmente relaxada e livre de seus tormentos. Sem pensar muito no que fazia, como outrora fazia, deitou-se, pousando a cabeça nas pernas de Carlos. Seus cabelos claros se espalharam pela calça dele, como as flores na calçada.
_ Mentira. Lembro-me de um inverno que ele estava abarrotado de flores! Era tão bonito... você se lembra, claro.
_ Sim. _ sim, agora era uma lembrança bem nítida. A casa de Carlos, no fim daquela rua cheia de árvores. Gostava de andar lá de bicicleta e depois passar tardes inteiras conversando com os amigos debaixo da sombra generosa de alguma delas. Até a lua parecia muito mais especial por entre a folhagem daquelas abençoadas e verdejantes. _ Sua rua era praticamente um bosque. Será que elas ainda estão por lá?
_Pouco provável. A região hoje é quase toda de prédios. Pequenos apartamentos com uma vaga na garagem e um playground com areia de mentira. Nesse tipo de lugar não há espaço para árvores.
_ E essas flores, têm perfume?
Carlos acariciou seus cabelos, suspirou e olhou pela janela.
_ Carlos?
_ Por que você insiste em mentir para mim? Acho que não precisamos disso. _ sua voz era calma, porem mais firme do que Ângela gostaria de ouvir.
_ Menti sobre o quê? Do que você está falando?
_ Sobre sentir saudades dele.
_ Eu... _ olhavam-se nos olhos. Ângela sentiu que não poderia dizer qualquer coisa.
_ Você não precisa disso, Ângela. Custa ser um pouco sincera?
_ Eu só não quero falar sobre isso. Talvez eu não queira nem pensar nisso, para falar a verdade. _ Afinal, ela perdera noites de sono tentando não pensar naquilo. Que direito ele tinha de perturbar-lhe daquela forma?
_ Ângela, querida... você não está velha demais e nem covarde demais. Posso sentir isso quando olho para você! Por favor, chega de sentir medo de encarar isso de frente!
_ Como se você entendesse!
_ Não fique brava comigo, vamos. Só estou tentando fazê-la ver que está prestes a fazer uma grande tolice por medo! Justo você!
Ângela desviou o olhar e fingiu prestar atenção em qualquer coisa do lado de fora. Que grande intrometido que ele era! Sempre achando que entendia mais dela do ela mesma, sempre achando que podia chegar no meio da conversar e dar sua maldita opinião!


Continua...

Ao som de: Atrocity - Here Comes the Rain Again

19.2.08

_ Mas a estação das flores não era a primavera? Todas as estações em um dia só, não soava assim?

O dia em que terminei de escrever esse conto foi muito especial. Luz de velas, muito frio e flores amarelas. Coisas de gente maluca. Mas as personagens agora esperam, por algo muito maior do que realmente parece ser, enquanto observam " todas as estações em um dia só".

Fora de Estação.

Pt.2

Olharam em volta, não faziam a mínima idéia de onde estavam. Riram, deram meia volta e fizeram o caminho contrário, mas evitaram passar muito próximos do amigo de Carlos, que agora ressonava discretamente, a cabeça pendida no peito, as mãos enfiadas no bolso da casaco marrom. Ângela confidenciou a Carlos:

_ Aposto que aquele casaco é presente da tia avó!

_ Deixe a pobre em paz, tá certo?! _ mas Carlos sorriu, revirando os olhos, entretido com as idéias estranhas da amiga. _ Que tal um café? Você paga.

_ Hum, apesar do convite tentador, acho que não, acabei de almoçar. Que tal voltarmos ao carro? Com essa horinha que temos, posso até dar uma boa cochilada.

_ Uau, parece muito emocionante! Mas me conte, não anda dormindo direito?

_ Muito trabalho, preocupações, o estresse de sempre...

Enquanto conversavam a conversa morna e despreocupada de bons e velhos amigos, atravessaram a estação e finalmente sob o sol das duas horas de uma bonita tarde de inverno, alcançaram o carro vermelho estacionado do outro lado de uma grande e florida árvore.

_ O banco de trás é meu! _ adiantou-se Ângela e abrindo a porta.

_ Ok, vá lá, dorminhoca. Posso caçar algo no rádio?

_ À vontade.

Ela deitou-se no banco traseiro, dobrando as pernas, torcendo o corpo tentando arrumar-se em uma posição mais confortável.

_ O carro do meu pai era bem maior e bem mais aconchegante, sabe?

_ Você é que cresceu, garotona...

Não contente, a jovem virou-se umas três vezes no banco, depois de ter tirado seus sapatos de salto alto e finalmente deu-se por vencida, largando-se do jeito que estava. Respirou fundo, verificou o relógio. Uns quarenta minutos ainda, tinha um bom tempo para descansar os olhos do cansaço que tirava um pouco as cores de seu rosto ultimamente. Fechou os olhos, ouvindo sons suaves, como de carros há duas travessas acima e as tentativas nada bem sucedidas de Carlos sintonizar em alguma estação. Só se ouvia estática. O sol que entrava pela janela esquentava seus tornozelos nus. Era um inverno um tanto estranho aquele. No dia anterior saira de casa com uma de suas blusas mais grossas, meias até os joelhos e com o guarda chuva no porta-malas. E agora, aquele sol escaldante, o céu tão azul e sem nuvens... observava, já que abrira os olhos pois a mente simplesmente não desligava apesar de todo cansaço do corpo, a paisagem acima de sua cabeça. Adorava aquelas flores, de onde se lembrava delas? E a árvore estava carregada e ainda abarrotavam a calçada! Mas a estação das flores não era a primavera? Todas as estações em um dia só, não soava assim? Coisas desses tempos malucos... era o apocalipse chegando, diria sua tia avó. Não é que ela mesma tinha uma esquisita tia avó? Riu.

_ Ri de quê?

_ De uma tolice que me lembrei... estou com os tornozelos queimando nesse sol!

_ Meus ombros estão em chamas também... ainda mais nessa parte do carro. Quer saber? Chega pra lá! _ Carlos abriu a porta e saiu do carro se espreguiçando um pouco. Ela se levantou com um pouco de dificuldade e deu espaço para o amigo sentar-se.

_ Uau, aqui tem uma pseudo sombrinha! E você ainda reclama dos seus tornozelos, não imagina como o sol estava lá na frente!

_ E o rádio, preguiçoso? Desistiu de sua missão?

_ É... simplesmente não sintoniza. Está de mau humor assim como esse tempo. Meio...

_ Fora de estação.

_ É... bem por aí. _ Carlos despiu a jaqueta preta que usava. _ Talvez agora eu esfrie um pouco.

_ Como você é esperto! Com esse casaco super grosso debaixo do sol... depois não quer sentir calor?

_ É que não gosto muito dessa camisa que estou por baixo. Deixa-me velho.

_ Você é velho, Carlos. Aliás, nós somos.

_ Nem tanto... _ virou o pescoço e analisou, coçando o queixo com um sorriso perverso. _ Mas bem que você está acabadinha!

Ângela acertou-lhe um tapa no braço e virou-se para observar a rua. Prendeu-se à árvore. Aquelas flores, tão lindas, caindo serenas, uma após a outra, no asfalto. Uma tarde fora de estação, mas tão bela... desejou que houvesse algo para ouvir no rádio, uma canção... mas qual? O silêncio era agradável, sempre o fora entre aqueles dois, mas havia uma qualquer coisa que a perturbava naquela tarde. Estava inquieta, era isso. Mexeu-se no banco, olhou para o relógio, ainda meia hora!, e finalmente pousou o olhar em Carlos, que também prestava atenção em algo fora do carro. Tinha um semblante pensativo e sem que ela notasse, igual ao dela.

_ Quanto tempo?

_Hein?

_Há quanto tempo ele está fora?

_ Ah, umas duas semanas, se não me engano...


Continua...


Ao som de ... Muse - Super Massive Black Hole

1.2.08

_ "E há horário para tudo, comer, beber, dormir, trabalhar, dançar, cantar, amar, e até mesmo para sonhar! "

Uma história bem fofinha. Porque sonhar faz bem às vezes.

Fora de Estação

Pt. 1


_Temos dois minutos.
Seus olhos fixos no relógio digital. Os segundos iam passando, ansiosos ou apreensivos? Só sabia que corriam, rápidos como os tempos modernos. E ela era uma filha orgulhosa dessa época, a vida e os sonhos acorrentados ao relógio e os olhos em busca dos números multicoloridos, tão atrativos, piscando para nos lembrar que a vida é cada vez mais curta, que envelhecemos cada vez mais e que simplesmente não temos controle sobre a situação. E como escapar se aqueles malignos estavam em todos os lugares? Nas paredes, nos computadores, nos passos apressados, nas cabeceiras e debaixo dos travesseiros, nos bolsos, na televisão, na voz incansável do locutor dos rádios, nos pulsos, nas praças, em vitrines e até nos sinos das igrejas. E há horário para tudo, comer, beber, dormir, trabalhar, dançar, cantar, amar, e até mesmo para sonhar! Só não sabemos a hora em que morreremos e estamos sempre esperando por ela, fingindo que podemos adiá-la...
_ Dez segundos, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois... um! Vamos?
Saíram do carro, e calmante atravessaram a rua que os levava até a estação de trem. Estava agitadíssima, pessoas enchiam de vida e movimento a grande e charmosa construção de tijolos vermelhos, tão antiga quanto aquela cidade. Pessoas andavam muito apressadas, algumas até corriam, cheias de todo o tipo de malas e mochilas. Diversas eram também aqueles que as carregavam, seus rostos tão ricos em expressões, algumas aflitas, um pouco de cansaço emoldurando os olhos de uns e uma alegria esperta nos olhos de outros. Uma distraída e tipicamente perdida jovem de cabelos muito curtos trombou com Ângela, que não pode fazer outra coisa a não ser rir da garota com um mapa prestes a cair do bolso do casaco desbotado que um dia fora... azul? Mas eles andavam tranqüilos, estavam no horário e era até bom observar toda aquela gente passando depressa por seus olhos. Quando mais jovem, ela podia perder uns minutos sentada apenas tentando adivinhar o destino de cada uma daquelas pessoas, até mesmo suas vidas. Algumas simplesmente passavam despercebidas com seus rostos impessoais, outras chegaram até mesmo a tirar seu sono.
Procuraram a plataforma onde ele deveria chegar e com a ajuda de um guarda gordo e de cabelo muito grisalho que escapava por baixo do boné, acharam sem maiores dificuldades. Porém, não havia trem algum por lá, apenas algumas pessoas com semblantes aborrecidos. Carlos aproximou-se de um senhor.
_ Que há, amigo? O trem não deveria ter chegado?
_ Pois é, veja que atrasou! Estou esperando pela minha insuportável tia avó há um tempinho já e agora mais essa! O trem teve um problema, não me pergunte qual, por lá mesmo e vai demorar no mínimo uma hora! Não é um absurdo? Como se eu não tivesse mais nada para fazer da vida...
Virando as costas para os dois homens discretamente, Ângela riu baixinho enquanto fingia observar os trilhos vazios. Carlos sorriu para o homem que foi sentar-se em um dos bancos e o deixou, apromixando-se de Ângela, tocando seu braço de leve. Ela sem perguntar nada, começou a andar sem direção sendo seguida por Carlos, apenas esperando uma distância segura.
_ Que amigo mal humorado você foi arranjar, hein?_ Ângela ria agora mais abertamente, mais ainda checando por cima do ombro do amigo se o homem não os observava, contudo ele parecia muito mais interessado em uma jovem de vestido vermelho que passava pela plataforma. _ Tia avó?!
_ Ah, nem me fale! Tive medo de o homem começar a contar histórias sobre a velha! E sabe do pior?
_ Não?
_ Tenho certeza que alguém aqui, muito esperta, _ puxou-a pelo braço e o beliscou de leve _ deixaria esse pobre mortal lá, ouvindo como a maldosa tia avó do meu novo amigo nunca fazia biscoitos para ele!
_ Eu? Nunca! Sabe muito bem que é de minha natureza acompanhar meus amigos, mesmo aqueles que me beliscam _ ela agora revidada com um doído beliscão em seu abdome _ em todos os
_ Ei, sabia que isso doeu?
_ Ótimo. Era a intenção. Mas... para onde estamos indo, afinal?



Continua......


Ao som de ... Queen - Who Wants to Live Forever