Pyromaniac
Seus
pensamentos estavam confusos e nebulosos. Eles já o eram costumeiramente, sem
dúvidas, mas agora eram ainda mais. O que estava fazendo mesmo? Quem estava
fazendo aquilo mesmo? Por que estava fazendo, afinal? Os pensamentos tinham
inicio, sim, conseguia iniciar uma ideia, mas eles não se concluíam, ficavam
perdidos, logo algo que parecia mais importante os interrompia, aquela linha
tênue de raciocínio.
Quando
se deu por desperta deste turbilhão de questionamentos, viu claramente suas
mãos, as suas mãos, soltando o
fósforo acesso em direção a uma generosa poça de álcool. Sem demora começou o
fogo, aquele laranja demoníaco, tremulando com vida própria. Fogo, fogo! Fogo
dentro de sua casa, dentro do seu quarto! Dentro dos confins de sua mente...
Assustou-se, sem entender direito o que acontecia, assustou-se ainda mais por
não saber o que deveria fazer a partir daquele momento. Em um instinto, saiu do
quarto, apressada e foi ao próximo. Colocou-se a frente da janela aberta,
aterrorizada, dando as costas para aquele pesadelo. Mais por não conseguir
pensar direito que por causa de qualquer outra coisa. Ouviu o crepitar
petulante e modesto das recém-criadas chamas. Deviam ser as vozes. Só poderia
ser coisa delas.
Os
pensamentos começaram a clarear. As vozes. Sentiu o cheiro áspero da fumaça
começando a se espalhar pelos cômodos. O som do fogo crescendo. Desejou poder
rezar, mas não se lembrava das palavras. Pai
nosso que estas nos céus... o resto não vinha facilmente. Não ficou muito
chateada com isso, até porque duvidava que Ele a ouviria. As vozes. Daria
atenção para ela agora? Sentia-se esquecida por Ele, relembrando flashs amargos. Sentiu-se por muito
tempo amaldiçoada, na verdade.
As
vozes. O peso do odor da fumaça se intensificava e estava bem ali na janela
escancarada, o céu dolorosamente azul. Um céu que lembrava liberdade. Mas se o
céu inspirava essa liberdade e Ele morava lá no alto, não haveria lugar para
ela. As vozes que ressonavam em sua cabeça. O médico dizia que elas não
existiam. Mas como não? Eram claras, vorazes e incansáveis. Diziam-lhe coisas
horríveis. Eram ruins e as pessoas que as pronunciavam deveriam ser ainda
piores. Que tipo de pessoa boa ouve tais coisas? Pior, se aqueles médicos de
rostos duros e atitudes pouco amigáveis tivessem razão, elas de fato não
existissem, que tipo pessoa era ela?
O tipo de pessoa que merecia muito bem o que estava prestes a acontecer.
Forçou
um pouco a memória enfraquecida, tentando se lembrar da primeira vez que as
ouviu. Só veio o medo à memória, aquele medo mordaz, ao perceber que elas não
vinham de lugar nenhum. De ninguém. Vivo, ao menos. Seriam fantasmas? Teria
enlouquecido? Contudo, no começo, elas eram gentis. Conversavam coisas bobas,
faziam piadas inocentes. Era bom. Alguém para lhe fazer companhia, enfim.
Alguém com quem conseguia travar uma conversa sem olhares recriminatórios. Sem
desprezo, sem tédio, com muita paciência. Se fosse um fantasma, seria um do
tipo bom. Achou um amigo que a entendia, sem julgá-la.
O
cheiro de borracha queimando lentamente começou a irritar seus olhos. Mas, do
nada, houve outras vozes. Tinham um som etéreo, metálico, rouco e mau.
Causavam-lhe arrepios. E diziam coisas ruins. Sobre os outros. Sobre sua
família. Palavras ruins e violentas. Muito violentas. E coisas ainda mais
terríveis sobre ela. Como era fraca, inútil, um peso. Como todo mundo não
sentiria sua falta se morresse. Como seria bom se aquela faca cortasse seus
pulsos, a sensação do sangue quente escorrendo deveria ser muito boa. Quase
prazerosa. Ou pular daquela janela. A sensação de não ter peso. De não ser um peso. Vencer. Voar. Deixar aquele
mundo injusto. Olhe como as pessoas olham para você, com desprezo, nojo, pena.
Um verme.
Um
dia não aguentou mais. Sentiu a alma sair do corpo. Vazio. Escuridão e
silêncio. Uma paz sinistra. O silêncio, todavia, era bom, sem fim. Sem peso.
Sem medo. Liberta. Havia morrido?
Foi
quando aquele médico lhe perguntou se ela ouvia vozes. Como elas eram. O que
diziam. Ela as conhecia? Você é esquizofrênica. Tome essas pílulas todos os
dias. Uma pílula laranja. Um laranja intenso, de doer os olhos. Virou-se e
reviveu aquele laranja em forma de chamas, que lambiam as paredes do corredor
central. Eram bonitas até. A fumaça se adensou. É claro. Isso tudo era coisa
das vozes. Saiu da janela e se sentou, abraçando os joelhos, no canto mais
distante da porta. Será que conseguiria lembrar-se da oração inteira? Mais
ainda nada adiantaria. Com vozes ou sem elas, estava condenada. O indizível,
ela estava fazendo. Ela. Fora sua mão que riscou o fósforo. Talvez o fogo a
purgasse. Talvez esta fosse sua última chance de ser salva.
Os
comprimidinhos laranjas fizeram muito bem seu papel. Vivia naquele silêncio.
Aquelas vozes horripilantes haviam sumido. Quase perdera sua vida, se perdera
na escuridão, mas tinha a chance de recomeçar. Isto é, se conseguisse se
acostumar com os dedos acusativos e os olhares desconfiados. Esquizofrenia? Que
quer dizer? Quer dizer que você é doida. Doidinha de pedra. Contudo, o silêncio
dentro de sua cabeça era melhor que tudo. Mais importante que qualquer outra
coisa. Podia até aguentar todos os olhares pesados. Era só desviá-los.
Sentia
agora o calor do incêndio invadir o quarto. Invadir seu corpo debilitado. Sua
mente instável. Seu instinto mais básico e visceral gritava para que fugisse.
Que lutasse. Corra! Pule pela janela! Grite! Lute! Lute... lute pelo menos mais
um pouco. Contudo, continuou imóvel, não tinha mais forças. Desde o primeiro dia
que elas voltaram. Os sons do inferno. Como aquelas labaredas, destruindo tudo
que tocavam. Cada pedaço de sua vida que nem valia a pena. O que sobrara dela,
se algum dia fora alguma coisa realmente? Restava o receio paranoico de
ouvi-las, de contar para alguém. E se a trancafiassem em um daqueles lugares
horríveis dos quais ouvira falar? Sozinha com seus próprios demônios? Sujos,
solitários, onde só lhe restaria a dor, dor... Sobrava a dor. Tudo que restava
dela e nela era a dor. Estava sendo consumida por dentro, por todas aquelas
sensações grotescas. E se o fogo a consumisse por fora, aquela carcaça vil que
apodrecia enquanto respirava, estaria livre.
Levantou-se
e fechou a janela. Deixou sua última chance para trás. E onde estavam agora aquelas
malditas vozes? Na hora mais difícil, elas não poderiam trazer algum conforto?
De não ter que padecer sozinha mais uma vez? Estava finalmente se entregando
aos desejos maus, aos conselhos incansáveis. Mas não, se tivesse que sofrer,
sentir as chamas se alimentarem dela e de sua alma pútrida, teria que ser só.
Será que Ele, que fez por ignorá-la a vida toda, veria isso como seu último
sacrifício e finalmente conseguiria a paz e o perdão? Não, não. Deus castiga os
suicidas. Eles vão para um lugar ruim. Um lugar que parecia sua vida. Vazia.
Amedrontada. Triste. Escura. O silêncio eterno. Mas pensando bem, um pouco de
silêncio não lhe faria mal...
Voltou
para o seu canto isolado. Agora era questão de tempo. Se tivesse sorte, uma
palavra que não conhecia, desmaiaria por causa da fumaça densa. Era difícil de
respirar. Prenderia o grito de uma vida inteira por mais alguns minutos. Via as
chamas cada vez mais próximas, o calor incandescente queimando-lhe o rosto,
fazendo arder suas narinas. O ar, o ar faltava-lhe... o ar. Não era agora que
sua vida inteira.. devia lhe passar pelos olhos? Como um filme... onde... seus
poucos momentos felizes...estariam em alto contraste? Era difícil pensar... por
que não lutara mais? Por que... não... correra? Covarde... covarde...covarde...seu
fim...você...merece. Olha, não é que... elas voltaram? As vozes... vieram me
buscar... vão me levar para o.... inferno?