21.10.09

Esse conto foi escrito para o concurso de um blog e o tema era: O Lado Negro da Mente Humana. Depois de muito quebrar a cabeça e de uma leve insolação, ele surgiu rs. Infelizmente não ganhei o concurso, mas está aí para quem quiser saborear um pouco de maldade.

Quando a Caixa se Abre.

Adriana era uma mulher pacata. De rosto doce a maternal, trejeitos de borboleta. Um exemplo de mãe e esposa, invejável. Era o orgulho do marido, que a chamava de “meu bem” quando chegava em casa, beijava-lhe carinhosamente o rosto enquanto afrouxava a gravata e contava-lhe sobre seu dia. Os filhos, lindos como anjos, não podiam ser melhor tratados, com todo mimo de uma verdadeira rainha do lar. No trabalho, como secretária, era muito bem quista por todos, sempre eficiente, gentil, olha gente, fiz um café fresquinho para nós! Adriana era uma linda caixinha de jóias, talhada a marfim e ouro branco.

Mas sendo uma caixa, tinha seu conteúdo escondido debaixo da tampa e este não era toda benevolência que era esperada. Ninguém sabia, e nem ela percebia por vezes, o que havia dentro de seu coração. Ela odiava. Cem vezes por dia, era uma explosão de ódio por debaixo do decote discretíssimo.

Do trabalho, tinha verdadeira repulsa. Das meninas, mais jovens e mais bonitas que ela, cheias de energia e futilidade, saracoteavam aqui e ali, fofoquinhas, intrigas, coisa pequena, mesquinha, muitas oferecendo sua juventude ao chefe bonitão em troca de um aumento. Derretiam-se todas por ele, que nem era tudo aquilo, pois ela sabia, enquanto as jovenzinhas se arrumavam, metendo-se em mini saias e saltos altos, ela tinha provado antes, em silêncio. E tinha detestado, um fraco, prepotente, grosseiro. Só de pensar nele, subia-lhe o ódio, o estômago revirava-se.

O marido, um frouxo. Como pudera escolher tão mal? Preferia até seu chefe àquela criaturinha passiva, carinhosa, melosa, sem um pingo de vida no sangue. Mas a culpa era dela, daquilo que acabou sendo. Foi criada assim, para ser perfeita, doce, angelical e infeliz. Pois dentro daquele corpo recatado corria tudo que a mãe e as amigas puritanas sempre detestaram, todo o lado negro da sociedade, o abominável.

O ódio é que a fazia respirar, porque não conhecia amor por nada, alegria em nada, só o descontentamento de dia após dia, acordar os filhos que nem pareciam dela, que a olhavam como se fosse uma estranha, que preferiam o pai, que eram tão inteligentes e impecáveis, sempre cheirando a limpeza, mas por Deus, eram tão frios! Deviam ser como ela, violentos, cheios de coisas horrendas palpitando dentro e isso ninguém devia saber, que escândalo seria! Depois, o trabalho, o trânsito insuportável, chegar em casa e cozinhar, só esperar por aquele beijo manso e odioso e a mesma conversa fiada, ah, meu bem, ela detestava que a chamasse assim, estou tão cansado! Depois o jantar, a TV que trazia mais tédio, deitar os filhos na cama e depois ir para sua, às vezes dormir desejando nunca mais acordar, às vezes sentindo aquele corpo macilento dentro dela, te amo, meu bem, você é tudo para mim... Ah, ela queria gritar que fosse para o inferno com sua ternura estúpida, que lhe fizesse mulher, que houvesse violência, que houvesse ao menos um pouco de prazer, para que deitar ao lado dele e sentir o cheiro enjoativo da sua loção pós barba não fosse a coisa mais apavorante do mundo!

Mas uma noite, em que dormiu chorando, mas chorando de ódio, veio o diabo sorrateiro abrir a linda caixinha talhada com ouro branco e marfim e todo mal estava feito.

Demorou uma semana inteira planejando. Detalhe por detalhe, deliciando-se com eles. Era sua chance, finalmente a liberdade, coberta de sangue e maldade, como devia ser, desde o começo. Seria sua vida apenas, para fazer dela o que bem quisesse. Trocaria de nome, de rosto, morreria para o mundo que a criou infeliz e nasceria novamente mesmo que fosse cair diretamente no inferno, porque nada era pior que seus dias calmos de abelha rainha.

Sexta feira ensolarada, pegou os filhos na escola e quando chegaram, o derradeiro bolo de chocolate estava na mesa. Ah, mãe, que delícia, muito obrigada! Foram doces até ali, como se soubessem dos planos da mãe. Sentiram sono, vão se deitar, meus anjinhos, estão cansados de brincar, não é? Beijou cada um na testa com carinho, pela última vez e os assistiu com verdadeiro prazer, dormir e ir direito para o céu, inferno, para o outro mundo, bem longe dela! Ria loucamente, enquanto que com uma faca afiada, retirava pedacinhos para o ensopado do marido. O pouco que restou de seus filhos, frutos de seu ventre diabólico, colocou no porta-malas. Enquanto preparava a refeição para o marido, fazia as malas, só levando o necessário, não queria mais nenhuma daquelas roupas, nada mais dessa morte que insistiam em chamar de vida, e boa, ainda por cima. O marido chegou, o mesmo ritual, o beijo, meu bem, que cheiro delicioso! Enquanto ele arrumava a mesa, dedicado e querendo só o melhor para sua linda esposa, ela terminava, com uma pitada de orégano e outra de fim. Ele comeu até fartar-se, elogiou, mas de repente, começou a sentir-se mal, sentir o mal, ai, que dor, meu bem, estou estranho! Deita aqui no sofá, eu cuido de você. E ela assistiu o marido, carcereiro de sua prisão, retorcer-se de dor, agonia, pânico, a morte lampejando nos olhos cheios de lágrimas, sem entender, enquanto ela se contorcia de prazer, de gozo, enfim, dá-me as chaves que quero ir embora para sempre! Quando as contrações pararam, seus olhos arregalados derramavam uma última lágrima, cobri-o com seu avental com delicadas rosinhas pintadas a mão pela sogra, soltou o coque, pegou as malas e foi para qualquer lugar onde podia ser o que mais queria: puta, devassa, maldita.


Até a próxima!