3.12.10

Queria que esse conto tivesse intensidade e velocidade, para quem lesse pudesse ficar sem fôlego. Será que deu??


Os Olhos do Furacão.

E lá estava eu.

Olhando direto nos olhos do furacão.

A tempestade acontecia somente dentro da minha mente, mas me era clara: casas eram levantadas do chão, primeiro os telhados, desfragmentando-se como se fossem delicadas pétalas de flores, pessoas se segurando com uma vontade louca a qualquer coisa que não fosse sair do lugar, as árvores sendo sugadas para aquele vórtex cataclísmico depois de todas suas folhas dançarem a insana dança da tempestade. Eu sozinha, encarava, os cabelos levemente tocados pela catástrofe, no meio de tudo, os olhos do furacão, mordazes, poderosos, gulosos.

Na verdade era apenas um par de olhos castanhos, um castanho vítreo, do qual se podia mergulhar no pântano da alma, uma alma lamacenta, incerta, mas estava ali, separada de mim apenas por aquelas duas telinhas transparentes. O rosto me brindava com algo que misturava a imaturidade com a indiferença. Quis odiá-lo mais do que já o fazia, apesar de saber que sempre o olharia com um sentimento intenso e vergonhoso: desejo.

Foi-se embora a carregando pela mão, aquele prêmio com vestido colado ao corpo, champagne... que mau gosto! Uma vadia, uma intrusa, uma usurpadora daquilo que nem de longe fora meu. Não a conhecia, não a queria conhecer, só nutrir aquele sentimento deliciosamente destrutivo de odiá-la por respirar e segurar nas mãos delicadas dele. Por que ela, ela naquele salto altíssimo, evidenciando minha feiura e decadência, por que era ela ali, sendo arrastada e mostrada a todos e não eu? Por que eu fui ocultada, como que uma vergonha, por que não eu podia ocupar aquele cargo, que a meu ver, era importante? Eu na sarjeta, ela no pedestal. Odiava-a com toda a força com que me sentia menos, menor, minúscula.

Todo o resto parecia perecer e implodir-se a partir de então. Só aquele caldeirão fervente borbulhava dentro de mim, sem razão, só existência... por que algumas coisas são assim, existem independentes de existir razão para elas, deixando de lado motivos. Elas são e respiram e andam e fervem e explodem! Queria jogar-me da ponte mais alta naquele momento. A ânsia desenfreada do ódio se voltava sem piedade a mim... que tola! Que tola! Abalar-se por tão pouco, sendo eu tão superior a tudo isso, sempre tão arrogante a essas situações e pior, agora, segura do mundo que insistia em me humilhar... por que tudo isso voltava me jogando ao chão? Eu já superara a todas essas torturas mundanas, esses jogos despropositados e vazios. A revolta a embaraço que sentia agora não sabiam disso, só me sufocavam, implacáveis.

Mas eu sabia o agente por detrás daquelas coisas horrendas que maculavam meu ser... era o Orgulho. Eu sou orgulhosa, vaidosa. Orgulho típico de homem me domina às vezes, por mais pacata e submissa que seja na superfície, eu sou dura e a vaidade queima numa fogueira macabra por debaixo de minha pele. E tudo que invocavam aqueles olhos de pântano era a chama pura do orgulho, da conquista. Ele era para mim o prêmio e não o contrário. Tão selvagem e indomável esse sentimento, que me tirava da sanidade, me tornando um guepardo furioso correndo atrás de uma gazela indefesa. Mas eu já fora guepardo de glórias, hoje era um velho e acabado, já tendo conquistado aquela gazela que me jogava na cara ser também tão carnívora quanto eu podia ser.

Ofegava, querendo fugir dali e apagar a memória, que era mais feminina que meu desejo. Era doce e férrea, não queria se esquecer de nada, queria me aferrolhar no desespero nostálgico. Por que se fora um dia, por que não ser novamente? Um dia, meu de novo... mas essa fantasia não era violenta, era cheia de ternura e o sentimento infantil que primeiro o trouxe para mim: um amor platônico, intocável. Porém, que há de acontecer quando o improvável está ali, nos seus braços, nas primeiras horas da manhã? Quando seus cabelos ligeiramente vermelhos se espalham no travesseiro alvo, no seu rosto amanhece uma paz satisfeita? E a marca dos lábios parece marcada para sempre nos seus, a voz ainda ressoa nos ouvidos uma canção querida? É tortura! Tortura! Nem mesmo o orgulho ferido, nem mesmo a mente racional ofendida, nem mesmo a vergonha de usar e ser usada é capaz de tirar a aura etérea daquelas noites gentis e preciosas. Elas se abrigam dos olhos do furacão, sendo o centro deles; como num delírio de febre, depois de todas as paisagens ruins, vem um sonho bom e confortável, branco e enigmático...

Vou-me embora, onde não tenha sua presença para me castigar. É como um pecado do qual não quero me arrepender e por isso pago uma penitência diária, de não poder esquecer, de amar, odiar, amar, odiar... sucessivamente e perdido no infinito do quanto a mente pode guardar. Ah, se eu pelo menos pudesse esquecer!

13.8.10

Fulana

A coisa que mais me irritava nela era o fato de estar sempre na terceira pessoa.

_ Faz tal coisa para Fulana?

_ Fulana disse tal coisa...

_ Mas a Fulana já pediu para você!

_ Fulana está tão cansada hoje!

Oras, Fulana, quem é você senão um eu? Senão uma pessoa? Por que excluir você de tudo e se tratar como um outrem, estranho?

Chateava-me o fato de ser sempre tão melindrosa e seu riso esganiçado de crítica. Por que, Fulana, se tem opinião, escondê-la com pura ironia e doçura? Fingir que é um cordeiro quando sabem que é um lobo?

Várias vezes tive vontade de esganá-la, agredi-la com o primeiro grampeador que me estava a mão. Mas esse impulso violento se convulsionava em um totalmente oposto: de abraçá-la. Pois aquele ser que vivia em terceira pessoa era digna de pena e não de ódio.

Vivia tentando ser aquela Fulana: não podia aceitar o fato de ser um poço de amargor, por isso se disfarçava de modo falho em cordeiro. Mas uma semana ao seu lado e já se sabia que podia se esperar a mordida ao calcanhar. Seu disfarce e seu eu eram todos um grande erro de concordância. Fingia ser mulher de família e mãe compromissada, quando era por natureza uma prostituta em busca de status. O marido era uma peça complicada de sua vaidade, mas sequer o ostentava mais. A filha, era um peso, nunca satisfazia, nunca era suficiente.

Seu ego era tão grande, vaidoso, que de certo não cabia em um eu. Tinha que ser ela, ela, ela. Ela era o que queria sempre ser, mesmo que a máscara só enganava a si própria. O eu, ninguém conhecia na sua imaginação. Aquela que não respeitava família alheia, horário de almoço, que gastava na cama de um velho que nem sexualmente a satisfazia. Eu, era um poço de adrenalina, eu caia num escândalo, eu era espancado com a porta de um carro e ia parar na delegacia. Ela, ela trabalhava corretamente, você já fez o que Fulana pediu, Fulana já terminou o serviço até de segunda!

Mas o eu, ela, Fulana, o cordeiro e o lobo, trocando de personalidade, de pronome do caso reto, de espécie, todos infelizes, solitários. Minha mão de observadora sentia o peso do grampeador, arma do crime, aliviar. Enchia-me de tristeza por Fulana.

Por ela que não sabia dizer eu.