Esse não é um dos meus melhores contos, mas é o que tenho de mais novo. Espero que gostem.
O pranto e a pena
OBS: Nenhuma lágrima foi
derramada durante a criação deste conto.
O pranto é praticamente a primeira
linguagem que o ser humano conhece. Quando somos tão pequenos e frágeis, tudo
que sabemos para dizer ao mundo o que sentimentos, seja dor, fome, solidão (que
nos acompanhada desde o momento que somos separados da segurança de nossas
progenitoras), é chorar. A angústia que nos acompanha desde o começo, mas
funciona. Uma mãe sempre sabe o tipo de choro de seu filho. E mesmo que com o
tempo, aprendamos a nos comunicarmos de maneira aparentemente mais refinada,
muitas vezes as palavras nos faltam de tal forma, incapazes de traduzir o
absurdo crescente dentro de nós, que retornamos às nossas origens e choramos.
Choramos até nada mais importar, até o os olhos arderem, o fôlego faltar e as
coisas parecerem melhores, como se as lágrimas pudessem realmente lavar a alma.
E ela, que vivia e amava as
palavras, via-se em situação parecida. Ela, que tão habilidosa fez delas sua
vida, sua profissão, encontrava-se com a mente calada sobre aquele assunto. Mas
não o coração. Ah não, esse parecia ter uma voz grave e continuava a lhe
perturbar o dia e o sono. Algo sinistro acontecia nela, algo que doía, crescia,
amargurava. E tudo que queria era poder falar sobre aquilo, como se assim,
compartilhando seus mais íntimos e sombrios sentimentos, pudesse suavizar seu
sofrer. Contudo, não havia jeito de botar para fora aquela coisa horrenda.
Sentava-se, já se frustrando pela previsão de fracasso, a frente da tela do
computador ou da folha vazia, todas inquisidoras e levanta-se, dez minutos
depois, correndo de si mesma, de sua falta de êxito, dos próprios pensamentos
que não a deixam.
Quase três anos de silêncio. Ela
desconfiou no principio, quando toda a dor ainda era felicidade, muita
felicidade, daquelas extasiantes, de tão forte que cega, que havia algo de
peculiar. Escrevia até para o gato que dormia na janela do vizinho, sobre
aquele único beijo com aquele desconhecido, sobre as cores que pintavam o céu
durante o ocaso. Tudo era material para preencher o papel, libertar a alma.
Achava-se quase uma alquimista por vezes, por transformar toda dor e desespero
em coisas cheias de beleza, de poesia... arte. Todavia, todas as vezes que
tentou dizer algo ao papel sobre o que sentia sobre o assunto, a poesia morria
dentro de sim, uma greve de silêncio. O amor continuava alimentando-a,
dando-lhe forças... mas suas palavras simplesmente se recusavam a participar da
celebração. E a felicidade era tanta e o mundo tão cheio de outras
possibilidades muito mais literárias, que se esqueceu da peculiaridade e
continuou a viver, completamente entregue as coisas boas e lindas que
vivenciava. Riu-se, desafiadora, um dia, acreditando que a vida real algumas
poucas vezes poderia ser melhor que a ficção.
Hoje, em retrospectiva,
parecia-lhe que tudo aquilo fora uma grande idiotice de sua parte. E como
castigo, até a ficção queria lhe abandonar. Como ele fez. Sabia que ela nunca
faria efetivamente, era leal. Sabia que um dia conseguiria falar disso, quando
estivessem as feridas seguramente cicatrizadas, quando fosse saudável discursar
sobre a dor. E sobre aqueles sentimentos, aquela estranheza. Doía sem parar,
doía quando ela achou que ia parar de doer. Eram lacerações surpresas, tiros
disparados ao acaso que a acertavam diretamente no peito sem aviso, sem fazer
barulho.
Olhava a situação de longe, sem
querer olhá-la realmente, mas tinha que fazê-lo. Tinha que assistir ao enterro
de suas últimas certezas, que agora tinha segurança que foram certezas que elas
mesma imbecilmente criou. Cegada de amor, encharcada de endorfinas. Algumas
horas não sabia de onde vinha aquela raiva, sim era raiva, um sentimento
pungente, amargo, feio. Mas não vinha só, de forma alguma. Analisando com a
calma fria de quem corta os pulsos por uma curiosidade mórbida, via que aquela
raiva também se misturava a uma decepção cortante, a uma frustração que gritava
contra si própria, a desesperança e o desassossego. Havia algo vivo dentro
dela, se mexendo, crescendo, dilacerando sua mente. Não podia lutar contra
aquilo. Não adiantava tentar se encher de compreensão, acreditar em um mundo
melhor, que a vida ia continuar. Não ia. Não enquanto não colocasse aquilo para
fora, expelisse sua alma e pudesse vê-la menos suja, menos doente. Não cessaria
tal angústia enquanto não houvesse perdão. E como era difícil perdoar!
Havia de perdoar a ele, o
imperdoável fato de sua fraqueza ou ainda pior, de suas más intenções. Qualquer
um que fosse o motivo, por quê? Por que deixá-la viver naquela felicidade de mentira?
Odiava a mentira mais que tudo. E a fraqueza dele, sua própria, ainda maior.
Porque não estavam todos os indícios bem explícitos para ela, jogados em sua
cara? Por que decidiu ignorá-los e caminhar para o esgotamento do que um dia
fora, sinceramente, belo? Sua covardia de deixar o castelo em ruínas
custara-lhe as últimas forças, os últimos fiapos de dignidade que os envolviam.
Como assim, era tão difícil
deixá-la? Que comodismo barato, sujo! Que coisa horrível fingir que era amor, e
ainda fingir-lhe mal, alimentando-a com migalhas esporádicas, sem promessas, só
um contínuo vamos fingir que estamos bem. Por que tudo aquilo? Se por detrás de
suas costas, ria-lhe de sua ingenuidade disfarçada de controle, de
descolamento. Está tudo bem, somos um casal bem resolvido. Claro, ela era
resolvida a ser uma fracassada e aguentar-lhe todas as intempéries de gênio
terrível entremeados por momentos doces e divertidos que lhe sanavam a
carência, que afastavam a insegurança e o terror. Pois sim, vivia aterrorizada,
vivia em constante luta para mantê-lo ao seu lado, falsamente ao seu lado, para
manter vivo aquele amor, que lhe parecia tão verdadeiro, tão determinado. Ah, que
a raiva maior, ainda maior do que da falta de consideração e respeito dele, era
por si mesma, pela sua ignorância, por ter fechado os olhos por tão pouco, ter
perdido tempo esmurrando uma parede de concreto duro e consciente. Um dia ele
vai ver, vai crescer e ver que as coisas são diferentes, que ele precisa me
levar a sério. Ah, um pouco de prepotência, uma santa arrogância em alguém com
tão pouca autoestima, quase que um sorriso sardônico do destino. Não, o tempo,
o sagrado tempo que ela vinha sacrificando em um desejo que morria em si,
mostrou-lhe que ela nunca fora mais nada que um companheiro de bar e uma cama
quente durante a noite. E todo o amor, a beleza, a poesia que pregava na sua
vida, onde foi parar? Dentro de seus sonhos, sonhados acordados, feitos em
agrados, em compreensão, desperdiçados. A máscara de amor verdadeiro e maduro
caiu e quando caiu, caiu dura e partiu-se em mil pedaços de verdades cruéis,
penetrando e fazendo sangrar um coração que agora, parecia mais duro que sua
antiga resolução de que aquilo devia ser amor. Mil pedaços de momentos, antes
fantasiados em alegria, agora encravados de dor, de ressentimento.
Os sentimentos gritavam-lhe bem
alto, sem decoro: COMO VOCÊ PODE SER TÃO OBTUSA?
Cansaço, sua alma em eterno
desassossego, quando finalmente parecia que ia voltar ao estado de paz
solitária, ficou sabendo mais. E naquele momento cruel, queria muito ser
ignorante de novo. Ignorar a felicidade do outro. E outro sentimento, esse
mesquinho, esse infantilizado e mal, detonou o resto de sua sanidade: por que
ele conseguiu seguir em frente e eu não? Não que houvesse amor ou ilusão nela,
não, tudo já fora por água abaixo, mas afinal essa sensação eterna de
chateamento, de perda, de vazio... como se o amor que ela tivesse criado e
plantando dentro do peito, tivesse sido arrancado com crueldade. Era quase uma
impressão física, uma dor na altura do peito, uma incessante falta de ar. Ele
não só seguira em frente como também a substituíra por uma pobre coitada. Pobre
coitada, porque, quem era aquele homem com que ela dormira tantas noites? Quem
era ele na verdade? Como alguém pode mudar tão rapidamente? Por que aquela
outra, recém-chegada, merecia ganhar tão rapidamente tudo que ela lutara por
anos e anos? Uma injustiça. Sentiu-se mais vazia ainda, sentiu-se mais usada,
mais tola e aquilo a sufocava mais e mais. Sentia vontade de gritar, gritar com ele, na
cara dele, que ele era um merda, um mentiroso! Um grande mentiroso! Quem é
você? Quem foi que eu dia amei, quem foi que um dia pensei em passar o resto
dos meus dias ao lado, que sacrifiquei tanto, que suportei tanto! Quem é você?!
O grito morria na garganta, nos
pesadelos que infestavam suas noites. O grito morria na dor, na dor de não
conhecer mais a ele, de não conhecer mais aos próprios sentimentos, que sua
época mais feliz era também a mais nebulosa, contaminada por dúvidas, desnudada
por verdades tristes e mortificantes. E não gritaria na cara dele, não
compartilharia com ele seus sentimentos mais negros, suas aflições. Jamais.
Havia ainda em si um resto de uma conduta limpa, de um orgulho protetor. Ainda
que aquelas coisas imundas que sentia lhe dilacerassem o peito e a pusessem
louca, nunca deixaria que ele soubesse. Nunca diria uma palavra de sua dor, de
sua quase morte, porque haveria de nascer de novo, melhor. Nunca descer do
salto, nunca dar o braço a torcer. Por mais que a torturasse, por mais que às
vezes a frustração se confundisse com ódio homicida, ela sabia que tudo aquilo
era passado. E estava sendo enterrado. Aos poucos. A imagem de dias felizes
sumiria aos poucos. A ferida cicatrizaria, não sem agonia, sem sangrar, mas fecharia
e seria uma linha esbranquiçada no tecido sentimental. Estaria ali, para sempre
lembrá-la do que foi feito e não deveria jamais ser repetido. A entrega
dissoluta de seu coração a um ideal que andava. Nunca fechar os olhos tão
fortemente que não se consiga mais abri-los. E finalmente, confiar em seus
instintos. Eles sempre lhe disseram, em sussurros sufocados que havia algo
errado ali. Algo que não ia acabar bem.
E por não conseguir dizer tudo
isso, simplesmente não achar palavras em seu universo para expressar o que
havia no seu coração moribundo, é que essa mulher que vivia de palavras se
rendeu a primeira forma de expressão que conheceu: tão pura, tão sincera, que
seria impossível colocá-las no papel ou compartilhá-las de forma diferente do
que ela fez: chorou. O pranto amargo que queria dizer que sofria, mas estava
cansada de sofrer. Cansada de alimentar a própria miséria. Chorou, chorou e quando
terminou, estava liberta. E não tinha
mais nada a dizer sobre o assunto. Nunca mais.