23.12.08

_ Last days....

2008 está chegando ao fim e para fechá-lo bem, postarei meu conto "campeão".
Espero que vocês gostem.

Podia se esquecer de quem era, mas delas, nunca.

A qualquer preço.

Deu-lhe as costas, mas sentiu seu antebraço ser agarrado com vigor pelas mãos trêmulas e decididas dela. Os dedos esqueléticos, de unhas roídas exaustivamente, queriam penetrar em sua carne, arrancar-lhe sangue, queriam ser ouvidos.

_ A qualquer preço, me ouviu bem?

Não respondeu, apenas acenou com a cabeça afirmativamente, querendo logo livrar seus olhos dos dela, que eram um mar negro e apavorante. Mas não houve tempo para escapar do que ele viu, a alma da mulher ali exposta, desesperada, suja como a lama que agora grudava em seus sapatos velhos. E ele sentiu aquela coisa pegajosa invadi-lo, inundando a própria alma e a contaminando, começou a sentir-se como ela, a ser ela. Porém se movia depressa e respirando fundo, afastou tudo aquilo que ameaçava tomar conta, sem compaixão, de seu espírito. Sentia-se protegido por uma sólida armadura, impenetrável, não podia deixar-se abalar. Tinha que ser forte, manter-se firme. Como ela disse, a qualquer preço.

O carro parecia não chegar nunca, estava mergulhado em um breu sem fim de uma esquina. Sentia seus ossos gelados como a ponta do nariz torto, devia ter se agasalhado melhor. No silêncio do abandono daquelas ruas imundas, ouvia ainda as palavras da mulher, pareciam ainda frescas, recém despejadas por aqueles lábios assustados. Elas se repetiam e pareciam ter vida própria, um significado profundo, mais profundo que ele mesmo poderia ser. A sonoridade delas era pesada, era um golpe certeiro na boca do estômago, uma sentença cruelmente apresentada. Estavam condenados.  

Enfiou-se sem jeito no carrinho velho, trancou-se lá dentro e tentou acalmar-se. O que mais incomodava não era toda conversa que viera antes, mas aquelas palavras doloridas. A qualquer preço, os dedos esmagando sua pele marcada pelo sol, implorando, eles imploraram, que levasse a sério como nunca tinha levado nada naquela vida miserável. Colocou a chave no contato, e deu a partida. Queria sair logo daquele lugar sinistro, aquela ruela estreita, sem o barulho da cidade para lhe dar o conforto de estar aconchegado pela multidão de estranhos desinteressados. Sentia aos poucos o coração acalmar-se dentro do peito magro, o sangue correr mais lentamente, a respiração quase se estabilizar.

O carro ia rodando lentamente, a luz do farol violando a escuridão do bairro. Tudo lá tinha o rosto do esquecimento e da pobreza, as casas abandonadas, cinzentas, as janelas que observavam por olhos encardidos e quebrados, o chão úmido e o cheiro... era um cheiro hediondo, de presságio, de crueldade... Mas ele sabia que aquele aroma perdido entre suas conchas nasais era dele, do corpo dele, que não era nem mais digno ou mais limpo que aquelas ruelas sinistras e esquecidas por Deus.

Achou que tinha se perdido, nunca avistava as luzes urbanas. Criou coragem em uma curva e espiou com o canto dos olhos o porta-luvas. Sentiu um arrepio correr e partir seu corpo ao meio. Ouviu o barulho de sua armadura rachando, era uma pequena rachadura, mas ela estava lá, abrindo-se devagar, devagar. Concentrou-se, devia ter virado na outra esquerda, tinha que voltar. Pare de rachar, fique forte, preciso de equilíbrio, de sangue frio, pensava rápido enquanto tentava achar o caminho. Estava tudo em suas mãos e agora tinha que ir até o final, a qualquer preço.

Enfim, começou a perceber a mudança no cenário. Um poste ou outro com iluminação apareceu e ele agradeceu. As casas agora estavam ocupadas e apesar da humilde aparência, emanavam vida e o som de uma televisão excessivamente alta invadiu o carro pela janela agora aberta. Precisava deixar o ar poluído da cidade purificar o carro. Esfregou os olhos, tinha sono e o corpo estava cansado. Imaginou como estaria sua aparência, a dela era péssima! Tinha emagrecido uns tantos quilos, seus olhos estavam enterrados nas órbitas, suas clavículas saltavam mais do que nunca, nem parecia a mesma mulher. E apesar de debilitada, tanta força tinha nas palavras... maldita, era uma maldita! E ele também seria. Seriam malditos e não podiam fazer mais nada a não ser seguir, sem questionar. Olhou de novo para o porta-luvas, engoliu seco. Chegaria logo, precisava de um banho bem frio, gelado, para acordar o corpo e assustar a alma. Mas estava acostumado, quantas vezes a luz não fora cortada?

O sinal fechou. Vermelho. Encarou de frente aquela luz. Vermelho era de culpa, uma culpa intensa e delirante. Vibrava, tinha vida como aquelas palavras, vibravam juntos e partiam, partiam aos poucos sua proteção, sentia a pele trincar e sentia medo, o medo embrenhando-se sorrateiro por aquela pequena fresta. Fechou os olhos com muita força, não posso ceder, não vou titubear, coragem, homem, coragem! A buzina trouxe-lhe de volta. Abriu os olhos e não havia mais vermelho, só um verde desbotado. Seguir, tinha que seguir a qualquer preço.

Um banho frio, é o que precisava. Tentava se concentrar, lembrar do banheiro pequeno e mofado. E um copo cheio de café sem açúcar. Precisava muito de cafeína, o negro fervente pelo vidro opaco, os copos de lá eram velhos e tinham cheiro de sabão barato. Mas não se deitaria na cama, essa noite não se sujaria naqueles lençóis que nem se lembravam que um dia foram brancos. O porta-luvas o encarava silencioso ainda. Fizera de tudo naquela vida sórdida, mas o que lhe era exigido sugava suas energias por completo, era demais para ele e para suas mãos maculadas.

O hotel estava perto. O bar da esquina estava cheio de gente. Dois homens pareciam querer começar uma briga, mas a maioria estava entretida em uma partida de sinuca. Queria uma cerveja, bem gelada, trincando de gelada, mas não era hora daquilo. Era hora de enfrentar. Fazer o que tinha que tinha que ser feito a qualquer preço. Enquanto observava o letreiro desbotado de letras redondas e azuis, lembrava que se aquela mulher tinha jeito para alguma coisa, era com as palavras. De todas, escolheu as melhores para machucá-lo, obrigá-lo e relembrá-lo. Podia se esquecer de quem era, mas delas, nunca.

Estacionou com certa dificuldade, era um estacionamento absurdamente apertado e as vagas deveriam ter sido feitas para meio carro, não era possível. Agora que o motor parara de roncar, não sabia mais como se sentia. Aliás, não sabia se era capaz de sentir. Não conseguia imaginar mais nada, nem o café, nem o banho, nem o rosto cadavérico e aterrorizado dela e tampouco algumas horas dali em diante. Pela primeira vez teve a sensação de realmente não saber o que o esperava quando abrisse aquela porta, era como se tivesse que morrer para deixar aquele carro e o corpo caminharia com outra alma. Mas era bom não sentir e era melhor ainda não tentar prever. Sentia-se leve, leve como se estivesse vazio de fato.

Ia abandonar o carro, arrastar sua carcaça que julgava abandonada até o quarto no terceiro andar e voltaria em breve. O porta-luvas ainda lhe deu uma leve olhadela, mas não seria preciso lembrá-lo, estava consciente e firme de suas obrigações cruéis. Porém, olhou no retrovisor, costume antigo de checar se alguém o perseguia. Naquele reflexo viu seus olhos, velhos e emoldurados por rugas e pior, viu sua alma e foi isso que fez com que seu escudo se estilhaçasse sem piedade, estava nu e desprotegido, exposto para si mesmo e aquilo era demais até para um homem como ele. E como se não bastasse enxergar suas próprias entranhas que tinham a cor do inferno, havia mais e era muito mais horrendo, era ela e sua alma que lembravam um rio em uma noite sem luar, não podia haver luz em uma coisa daquelas e ela e seu espírito estavam em tudo nele, até em suas rugas, em cada poro, em cada cicatriz. Estava dominado e infectado, condenado, morto, enterrado. Apoiou seus cotovelos ossudos no volante e começou a chorar, como nunca chorara antes. Seu soluçar era de desespero, era o desespero líquido e límpido, lágrimas que não queriam e não podiam cessar. Era uma criança que já não era inocente e chorava copiosamente, de dor, uma dor que não era física, mas nada podia doer como aquilo. E chorava na tentativa de limpar, de não ser mais aquela escuridão que vira, de livrar-se da presença dela, haveria de sair de seu ser. A qualquer preço.



Até, bom fim de ano!

Próximo conto...?