16.9.12

O Pranto e a Pena


Esse não é um dos meus melhores contos, mas é o que tenho de mais novo. Espero que gostem. 


O pranto e a pena


OBS: Nenhuma lágrima foi derramada durante a criação deste conto.

O pranto é praticamente a primeira linguagem que o ser humano conhece. Quando somos tão pequenos e frágeis, tudo que sabemos para dizer ao mundo o que sentimentos, seja dor, fome, solidão (que nos acompanhada desde o momento que somos separados da segurança de nossas progenitoras), é chorar. A angústia que nos acompanha desde o começo, mas funciona. Uma mãe sempre sabe o tipo de choro de seu filho. E mesmo que com o tempo, aprendamos a nos comunicarmos de maneira aparentemente mais refinada, muitas vezes as palavras nos faltam de tal forma, incapazes de traduzir o absurdo crescente dentro de nós, que retornamos às nossas origens e choramos. Choramos até nada mais importar, até o os olhos arderem, o fôlego faltar e as coisas parecerem melhores, como se as lágrimas pudessem realmente lavar a alma.
E ela, que vivia e amava as palavras, via-se em situação parecida. Ela, que tão habilidosa fez delas sua vida, sua profissão, encontrava-se com a mente calada sobre aquele assunto. Mas não o coração. Ah não, esse parecia ter uma voz grave e continuava a lhe perturbar o dia e o sono. Algo sinistro acontecia nela, algo que doía, crescia, amargurava. E tudo que queria era poder falar sobre aquilo, como se assim, compartilhando seus mais íntimos e sombrios sentimentos, pudesse suavizar seu sofrer. Contudo, não havia jeito de botar para fora aquela coisa horrenda. Sentava-se, já se frustrando pela previsão de fracasso, a frente da tela do computador ou da folha vazia, todas inquisidoras e levanta-se, dez minutos depois, correndo de si mesma, de sua falta de êxito, dos próprios pensamentos que não a deixam.
Quase três anos de silêncio. Ela desconfiou no principio, quando toda a dor ainda era felicidade, muita felicidade, daquelas extasiantes, de tão forte que cega, que havia algo de peculiar. Escrevia até para o gato que dormia na janela do vizinho, sobre aquele único beijo com aquele desconhecido, sobre as cores que pintavam o céu durante o ocaso. Tudo era material para preencher o papel, libertar a alma. Achava-se quase uma alquimista por vezes, por transformar toda dor e desespero em coisas cheias de beleza, de poesia... arte. Todavia, todas as vezes que tentou dizer algo ao papel sobre o que sentia sobre o assunto, a poesia morria dentro de sim, uma greve de silêncio. O amor continuava alimentando-a, dando-lhe forças... mas suas palavras simplesmente se recusavam a participar da celebração. E a felicidade era tanta e o mundo tão cheio de outras possibilidades muito mais literárias, que se esqueceu da peculiaridade e continuou a viver, completamente entregue as coisas boas e lindas que vivenciava. Riu-se, desafiadora, um dia, acreditando que a vida real algumas poucas vezes poderia ser melhor que a ficção.
Hoje, em retrospectiva, parecia-lhe que tudo aquilo fora uma grande idiotice de sua parte. E como castigo, até a ficção queria lhe abandonar. Como ele fez. Sabia que ela nunca faria efetivamente, era leal. Sabia que um dia conseguiria falar disso, quando estivessem as feridas seguramente cicatrizadas, quando fosse saudável discursar sobre a dor. E sobre aqueles sentimentos, aquela estranheza. Doía sem parar, doía quando ela achou que ia parar de doer. Eram lacerações surpresas, tiros disparados ao acaso que a acertavam diretamente no peito sem aviso, sem fazer barulho.
Olhava a situação de longe, sem querer olhá-la realmente, mas tinha que fazê-lo. Tinha que assistir ao enterro de suas últimas certezas, que agora tinha segurança que foram certezas que elas mesma imbecilmente criou. Cegada de amor, encharcada de endorfinas. Algumas horas não sabia de onde vinha aquela raiva, sim era raiva, um sentimento pungente, amargo, feio. Mas não vinha só, de forma alguma. Analisando com a calma fria de quem corta os pulsos por uma curiosidade mórbida, via que aquela raiva também se misturava a uma decepção cortante, a uma frustração que gritava contra si própria, a desesperança e o desassossego. Havia algo vivo dentro dela, se mexendo, crescendo, dilacerando sua mente. Não podia lutar contra aquilo. Não adiantava tentar se encher de compreensão, acreditar em um mundo melhor, que a vida ia continuar. Não ia. Não enquanto não colocasse aquilo para fora, expelisse sua alma e pudesse vê-la menos suja, menos doente. Não cessaria tal angústia enquanto não houvesse perdão. E como era difícil perdoar!
Havia de perdoar a ele, o imperdoável fato de sua fraqueza ou ainda pior, de suas más intenções. Qualquer um que fosse o motivo, por quê? Por que deixá-la viver naquela felicidade de mentira? Odiava a mentira mais que tudo. E a fraqueza dele, sua própria, ainda maior. Porque não estavam todos os indícios bem explícitos para ela, jogados em sua cara? Por que decidiu ignorá-los e caminhar para o esgotamento do que um dia fora, sinceramente, belo? Sua covardia de deixar o castelo em ruínas custara-lhe as últimas forças, os últimos fiapos de dignidade que os envolviam.
Como assim, era tão difícil deixá-la? Que comodismo barato, sujo! Que coisa horrível fingir que era amor, e ainda fingir-lhe mal, alimentando-a com migalhas esporádicas, sem promessas, só um contínuo vamos fingir que estamos bem. Por que tudo aquilo? Se por detrás de suas costas, ria-lhe de sua ingenuidade disfarçada de controle, de descolamento. Está tudo bem, somos um casal bem resolvido. Claro, ela era resolvida a ser uma fracassada e aguentar-lhe todas as intempéries de gênio terrível entremeados por momentos doces e divertidos que lhe sanavam a carência, que afastavam a insegurança e o terror. Pois sim, vivia aterrorizada, vivia em constante luta para mantê-lo ao seu lado, falsamente ao seu lado, para manter vivo aquele amor, que lhe parecia tão verdadeiro, tão determinado. Ah, que a raiva maior, ainda maior do que da falta de consideração e respeito dele, era por si mesma, pela sua ignorância, por ter fechado os olhos por tão pouco, ter perdido tempo esmurrando uma parede de concreto duro e consciente. Um dia ele vai ver, vai crescer e ver que as coisas são diferentes, que ele precisa me levar a sério. Ah, um pouco de prepotência, uma santa arrogância em alguém com tão pouca autoestima, quase que um sorriso sardônico do destino. Não, o tempo, o sagrado tempo que ela vinha sacrificando em um desejo que morria em si, mostrou-lhe que ela nunca fora mais nada que um companheiro de bar e uma cama quente durante a noite. E todo o amor, a beleza, a poesia que pregava na sua vida, onde foi parar? Dentro de seus sonhos, sonhados acordados, feitos em agrados, em compreensão, desperdiçados. A máscara de amor verdadeiro e maduro caiu e quando caiu, caiu dura e partiu-se em mil pedaços de verdades cruéis, penetrando e fazendo sangrar um coração que agora, parecia mais duro que sua antiga resolução de que aquilo devia ser amor. Mil pedaços de momentos, antes fantasiados em alegria, agora encravados de dor, de ressentimento.
Os sentimentos gritavam-lhe bem alto, sem decoro: COMO VOCÊ PODE SER TÃO OBTUSA?
Cansaço, sua alma em eterno desassossego, quando finalmente parecia que ia voltar ao estado de paz solitária, ficou sabendo mais. E naquele momento cruel, queria muito ser ignorante de novo. Ignorar a felicidade do outro. E outro sentimento, esse mesquinho, esse infantilizado e mal, detonou o resto de sua sanidade: por que ele conseguiu seguir em frente e eu não? Não que houvesse amor ou ilusão nela, não, tudo já fora por água abaixo, mas afinal essa sensação eterna de chateamento, de perda, de vazio... como se o amor que ela tivesse criado e plantando dentro do peito, tivesse sido arrancado com crueldade. Era quase uma impressão física, uma dor na altura do peito, uma incessante falta de ar. Ele não só seguira em frente como também a substituíra por uma pobre coitada. Pobre coitada, porque, quem era aquele homem com que ela dormira tantas noites? Quem era ele na verdade? Como alguém pode mudar tão rapidamente? Por que aquela outra, recém-chegada, merecia ganhar tão rapidamente tudo que ela lutara por anos e anos? Uma injustiça. Sentiu-se mais vazia ainda, sentiu-se mais usada, mais tola e aquilo a sufocava mais e mais.  Sentia vontade de gritar, gritar com ele, na cara dele, que ele era um merda, um mentiroso! Um grande mentiroso! Quem é você? Quem foi que eu dia amei, quem foi que um dia pensei em passar o resto dos meus dias ao lado, que sacrifiquei tanto, que suportei tanto! Quem é você?!
O grito morria na garganta, nos pesadelos que infestavam suas noites. O grito morria na dor, na dor de não conhecer mais a ele, de não conhecer mais aos próprios sentimentos, que sua época mais feliz era também a mais nebulosa, contaminada por dúvidas, desnudada por verdades tristes e mortificantes. E não gritaria na cara dele, não compartilharia com ele seus sentimentos mais negros, suas aflições. Jamais. Havia ainda em si um resto de uma conduta limpa, de um orgulho protetor. Ainda que aquelas coisas imundas que sentia lhe dilacerassem o peito e a pusessem louca, nunca deixaria que ele soubesse. Nunca diria uma palavra de sua dor, de sua quase morte, porque haveria de nascer de novo, melhor. Nunca descer do salto, nunca dar o braço a torcer. Por mais que a torturasse, por mais que às vezes a frustração se confundisse com ódio homicida, ela sabia que tudo aquilo era passado. E estava sendo enterrado. Aos poucos. A imagem de dias felizes sumiria aos poucos. A ferida cicatrizaria, não sem agonia, sem sangrar, mas fecharia e seria uma linha esbranquiçada no tecido sentimental. Estaria ali, para sempre lembrá-la do que foi feito e não deveria jamais ser repetido. A entrega dissoluta de seu coração a um ideal que andava. Nunca fechar os olhos tão fortemente que não se consiga mais abri-los. E finalmente, confiar em seus instintos. Eles sempre lhe disseram, em sussurros sufocados que havia algo errado ali. Algo que não ia acabar bem.
E por não conseguir dizer tudo isso, simplesmente não achar palavras em seu universo para expressar o que havia no seu coração moribundo, é que essa mulher que vivia de palavras se rendeu a primeira forma de expressão que conheceu: tão pura, tão sincera, que seria impossível colocá-las no papel ou compartilhá-las de forma diferente do que ela fez: chorou. O pranto amargo que queria dizer que sofria, mas estava cansada de sofrer. Cansada de alimentar a própria miséria. Chorou, chorou e quando terminou, estava liberta.  E não tinha mais nada a dizer sobre o assunto. Nunca mais. 

2 comentários:

kita_kunn disse...

Como sempre um ótimo conto!
Ele expressa o sentimento de milhões, se não de todos, que tiveram seus corações partidos e seus sentimentos enganados.
Como dói, não? "Por que aquela outra, recém-chegada, merecia ganhar tão rapidamente tudo que ela lutara por anos e anos? Uma injustiça."
Ainda bem que há um consolo, simples que seja como chorar, como aquelas gotas, além de anti-microbióticas, ainda possuem a capacidade de eliminar outras coisas que também não conseguimos enxergar.

kita_kunn disse...

OBS: Nenhuma lágrima foi derramada durante a LEITURA deste conto. (rs)