4.10.12

Para Sempre Partido






Para Sempre Partido


Acordou com os rugidos selvagens de uma cidade que se recusava a dormir. O corpo estava excessivamente quente do lado esquerdo, a garganta seca arranhava um pouco. O sono havia se desapegado dele sem muito esforço. Observou o teto onde as luzes da avenida se refletiam em flashes descontínuos. Sentiu que poderia ficar ali, assistindo essa brincadeira a madrugada inteira, sem pensar em nada especial, nada perturbador. Até queria que isso fosse possível... seria um alívio enorme. Levantou-se com cuidado para não acordá-la e tateando a escuridão, achou uma peça de roupa qualquer largada ao chão e dirigiu-se rapidamente a cozinha para beber um pouco de água. A sede era de matar!
Ao voltar, movendo-se silenciosamente pelo apartamento, como uma sombra, fuçou os bolsos das calças e encontrou seu maço de cigarros. Abriu com o máximo de cuidado a porta de vidro da varanda, sentindo o vento gelado da noite arrepiar os pelos de sua nuca, acariciar suas costas nuas e quentes. Deixou-se tomar por aquela sensação gélida e sensual e fechou a porta atrás de si, abraçando a solidão daquele pequeno espaço, separado da jovem por aquele vidro fosco e do resto do mundo por oito andares. Segurança, por alguns momentos, o enlace solitário do vento era pura segurança. Logo menos seria um resfriado, com certeza, mas aquilo era a melhor coisa que tinha naquele momento.
Apoiando os cotovelos nas grandes de segurança, acendeu o cigarro merecido. A ponta incandescente sempre tinha aquele efeito hipnótico sobre ele durante a noite, quando parecia ser a única luz a guiá-lo em meio à escuridão desconhecida. Dando as costas para a cidade ensandecida, passou a observar, com um pouco de dificuldade que lhe aguçava a imaginação, o corpo que compartilhava sua cama naquele momento. Ela estava deitada de bruços, semi-encoberta por um lençol fino e negro, contrastando com sua delicada pele clara de menina. O começo de uma complexa tatuagem marcante era visível, perdendo-se por dentre os vincos enegrecidos do lençol. Seus cabelos, tão escuros como a penumbra que dominava o quarto, só se distinguiam por estarem espalhados nas fronhas claras e por terem um brilho quase sobrenatural. Daquele ângulo não podia ver-lhe o rosto, apenas os contornos bem feitos dos ombros pequenos, das costas torneadas. O que será que sonhava? Ressonava tão tranquilamente, via as costas subirem e descerem ritmadas por uma respiração tranquila. Estava feliz. Nem precisava de luz ou do ângulo certo para saber que em seu belo rosto sem marcas, pousava um sorriso pacífico, banhado de satisfação. Um sorriso nele próprio despontou, mascarando uma afeição que a todo custo tentava evitar. Contudo, ao terminar aquele primeiro cigarro, sentiu um vazio tão imenso apertar seu peito, tão intenso, que temeu perder o equilíbrio. Segurou-se com força na grande e puxou o ar cada vez mais frio em grandes golfadas de desassossego. Que diabos acontecia?
Quando se sentiu mais estabilizado, ainda que imerso em uma tristeza que cortava mais que o vento gelado, acendeu outro cigarro, endireitando a postura e o fluxo de pensamentos, agora evitando a bela visão da jovem, de seu sono invejosamente inabalável, daquela paz que um dia tivera. Nunca mais seria o mesmo. Nunca mais seria como ela. Relembrou a conversa de algumas horas antes, entremeadas com generosos goles de vinho.
_ Então... você nunca amou ninguém?
_ Acho que não. Pensando bem, sendo sincera... de verdade?
_ Nada mais que a verdade.
_ Não, nunca.
_ Uma virgem de sentimentos.
_ Exato.
_ Hum... interessante.
Um longo silêncio se prosseguiu, sem ser desconfortável ainda.
_ Não há mais chances para mim, então.
Viu-a corar instantaneamente, as maçãs do rosto afogueando-se tanto, que desviou o olhar para a taça de vinho pela metade. Então, um silêncio constrangedor colocou-se entre os dois por aqueles momentos desconfortáveis com aparência de eternos.
_ Não foi o que quis dizer...
_ Podemos ir?
Riu-se, agora, sozinho, sem o nervoso de ter que lidar imediatamente com a situação. Ela não entendera o que ele quis dizer. O que ele queria dizer realmente era exatamente aquele pavor repentino que se assomava na alma naquele instante. Não havia mais ponto de retorno. Para ela, talvez. Mas a vida o tornara aquele homem que uma versão jovem dele mesmo não reconheceria. Toda aquela espontaneidade que transcendia dela, aquela entrega sem reservas... não fazia mais parte da alma dele. O tempo o transfigurou naquela versão adulta e um tanto amargurada, com tantas coisas para trazer de bagagem, tanta... dor. Decepção. Um número grande de sentimentos que ela não conhecia o gosto, não conseguiria nem imaginar. Não importava o quanto amor ele ainda havia de viver, com certa uma quantidade maior do que havia vivido até então, mas não havia como ser como antigamente. Aquela ingenuidade sentimental, aquela pureza que o fizera pastar em amargos campos de desapontamento e intranquilidade, aquilo fora assassinado no primeiro contanto com os lábios da primeira mulher que veio a amar. No primeiro olhar dissimulado. No coração partido que achou que fosse matá-lo. Podia se curar de todos os ressentimentos e raivas contra a vida e as pessoas que juraram amor e o abandonaram. Ou superar toda a paixão que viu morrer dentro de si, de repente, de todo não que teve que pronunciar, de todo e qualquer coração que viu partir por sua culpa. De vítima a algoz, repetidamente, do paraíso das juras eternas ao inferno das promessas quebradas... aquilo fazia parte dele, para sempre. Não era passado, morto e enterrado. Mudado, transformado.  A dor tornou-se o medo dela, o amor tornou-se a ânsia e a carência, as promessas tinham peso de dívidas, o descontentamento parecia o fim de toda a estrada. A experiência o fez mais preparado, aprendeu a superar mais fácil, a compreender os caminhos tortuosos que tinha que percorrer. É claro, a experiência abriu-lhe os olhos a mentiras descaradas que algumas tentavam-lhe dizer, tornou as palavras preciosas como atos. Tornou-lhe mais preparado e apto a viver em um mundo feito de ciclos de felicidade e agonia. Era grato por isso. Mas, observando aquele ser imaculado, agora podia ver-lhe o rosto, cheio de esperança, cheio de possibilidade, sem dor, sem nenhuma dor, trocaria toda aquela experiência que conquistou durante anos de estrada, por aquele semblante satisfeito, aquele sorriso... aquele sorriso cheio de paz. Era estonteante. Era consolador. Era uma coisa que não existia mais nele. Não era inveja, era saudade. Uma saudade pungente com gosto de morte. Cheiro de flores. Era irresistível.
Entrou no quarto com cuidado e deitou-se, devagar na calma, não querendo acordá-la. Envolveu carinhosamente em um aperto gelado e sentiu o choque de temperaturas. Viu o corpo dela se arrepiar, cada pelo responder ao contato. Ela se mexeu preguiçosamente, aceitando o abraço, murmurando algo inteligível. Beijou-lhe a bochecha e fechou os olhos.
_ Está tudo bem. Volte a dormir, linda.

1 comentários:

kita_kunn disse...

Um conto deveras interessante. No começo eu não coloquei muita fé nele; deve ser pelo meu perfil de leitor. No final do conto, por outro lado, quando a autora entra e descreve os pensamentos do rapaz com maestria, eu não queria para de ler nem para piscar, acho que também pelo fato de eu gostar de saber como as pessoas pensam e pelo prazer de ler estas palavras bem escolhidas. Parabéns mais uma vez, minha querida!