30.12.12

Bodas Carmesim


Último conto 2012.
Que em 2013 haja mais inspiração (e disciplina)
Até mais.
             


BODAS CARMESIM 

   Aquela última garfada lhe caiu particularmente mal. Não que as outras tinham sido de alguma forma agradáveis, mas aquela última acabou precocemente com seu apetite. Olhou para o prato meio vazio, sentindo náuseas. Mas preferia olhar para aquela comida indigesta do que encará-la. Ele podia sentir seus movimentos na outra ponta da mesa, ouvir o barulho da faca cortando o pedaço de carne mal-passada. Até sua mastigação, lenta, dura. A TV não podia disfarçar o extremo desconforto. Nada podia disfarçar o que pairava sobre a mesa farta do jantar. Ódio. E medo.
                Ele não fazia o tipo covarde. Tinha passado por maus e tensos bocados durante a longa vida, inclusive aquele assalto, ainda podia lembrar-se do revólver pressionando suas costelas. Ele teve medo, suou frio, as pernas bambearam. Sabia que ali poderia ter perdido sua vida. Mas foi um choque de adrenalina, poucos minutos, apesar da eternidade de sua duração relativa. Porém, aquele medo não era como nada que já tinha experimentado. Era constante. Sufocante. Exasperante. Estava ali com ele durante a refeição. Quando saia para o trabalho, sempre esgueirando por trás dos ombros. Quando chegava a casa. Respirava fundo, três vezes, antes mesmo de colocar as mãos na maçaneta. E o pior. Quando ia dormir. Sua audição parecia ficar milhares de vezes mais aguçada, cada mínimo ruído o despertava. Seu corpo todo estava em constante alerta, esperando algo muito ruim acontecer com ele. Era cansativo. Seu corpo doía, as articulações pareciam duras, os olhos como se fossem polvilhados constante com areia. O pânico era implacável.
                E o que despertava esse medo?
                _ Minha comida está assim tão detestável?
                Ele levantou os olhos com muito esforço. Seu corpo estremeceu.
                _ Meu... meu fígado está bem ruinzinho hoje. Sua comida está boa sim.
                Engoliu seco. Esperou. Ela o encara com frieza. E ódio. Sim, por debaixo das camadas de gelo, havia lava borbulhante. Desviou o olhar e afastou o prato. Até quando poderia viver assim?
                _ Bem feito. Fica comendo porcaria na rua. Você não tem mais idade para isso.
                Ele levantou devagar da cadeira para deixar a mesa. Não ouvindo nenhum comentário pernicioso, investiu em uma fuga bastante imperceptível. Seu quarto, o único lugar “seguro”.
                Ele nunca se sentia seguro de verdade.
                Não no mesmo teto que ela.
                Entrou no quarto e cuidou de trancar a porta. Há alguns anos, não seria necessário fazer isso. Mas naquele dia seu pânico tinha atingido tais proporções, que sentia que o coração ia explodir em desespero se não pudesse contar com nada que lhe proporcionasse a mínima ilusão de segurança.
                Caiu pesadamente na cama, que gemeu levemente com o impacto. As luzes estavam apagadas e ele suspirou pesadamente. Por um minuto, sentiu o corpo relaxar. A mente baixar a guarda. Contudo, sentiu que choraria a qualquer momento. Àquela altura da vida. Riu, nervosamente. Era um velho ridículo mesmo, ela tinha razão. Contudo, a lembrança de sua imagem mórbida tensionou-o por inteiro novamente.
                Tinha que ser hoje.
                Eram casados há 40 anos. Mas sua esposa dificilmente lembrava a mulher com quem ele casara. Oras, ele provavelmente também era pouquíssimo parecido com aquele jovem entusiasmado, cheio de planos, charmoso. A idade não poupava ninguém, as rugas ao redor dos olhos eram testemunhas inquestionáveis. Mas basicamente, ele era o mesmo, bem no fundo, apenas uma versão envelhecida de si mesmo. Isso se você não contar que, naquele exato momento, ele era uma versão envelhecida e mortalmente apavorada.
                Sua outrora bela esposa, contudo, fora transformada muito além da erosão normal do tempo. Não eram suas rugas, sua pele flácida, os muitos quilos a mais, o cabelo acinzentado, a gradual perda de energia. Era o que ela era de verdade. No fundo. Sua alma, ele atreveria a dizer. Tudo bem, ela nunca foi a mais doce das mulheres. Fazia a linha durona, esquentada, tinha um humor realmente caustico. Mas era boa pessoa. Agradável, ótima de se conversar. Ele sorriu amargamente, um gosto acre no fundo da boca. Ele a amara. Loucamente. Olhou para a porta. Agora ele a usava trancas para se proteger. Que infelicidade.
                Tinha que ser hoje. Sua saúde já não era a mesma. Inclusive a mental, ele temia. Tinha que se libertar daquele horror que o possuía. Tentara lutar contra ele. Muito. Mesmo quando o amor e a amizade, cola que gruda muitos casais depois de tantos anos de união, já tinha se tornado indiferença. Mas a indiferença era perfeitamente aceitável. Mas não a eminência da morte no quarto ao lado, roncando como se fosse um cão infernal. Nunca tinha ouvido nenhum relato de um marido aterrorizado por sua esposa. Era quase risível a situação.
                Mas não havia nada de engraçado. O tragicômico passava longe daquela situação. Era um filme de terror, rodado em loop em sua mente insone, abatida, derrotada.
                Pensara em uma Síndrome do Pânico. Era só um nome para uma doença para lá de esquisita. Pensara em demência precoce, pensara em esquizofrenia, em paranoia, em intoxicação por alguma toxina na casa, no trabalho. Bolores do mal, aham, já tinha visto um documentário sobre aquilo (trancado a sete chaves em seu quarto). Mas ele sabia que no fundo estava tentando ser solidário consigo mesmo e com sua ex-esposa. Ex, porque aquela mulher tenebrosa não era sua esposa de forma alguma. Era impossível.
                Ela começou a mudar lentamente. Suas piadas não tinham mais humor. Eram críticas, ofensas. Sua gargalhada, que antes era espalhafatosa, mas gostosa de ouvir, tornara-se um ruído rouco e irônico. Seus olhos tinham mudado, seu olhar. Era mais do que duro ou carregado de ódio. Era vil. De gelar a espinha. Ela transpirava ódio. Sua postura, sempre tensa, o jeito como sua mandíbula parecia sempre contraída. Qual fora a última vez que a vira sorrir? Seu silêncio era assustador. O jeito como às vezes a via sentada a penteadeira antiga, presente do casamento dos dois, penteando os curtos cabelos, os olhos anuviados e olhar perdido, as mãos como garras cravadas na escova, longas, demoradas e incansáveis escovadas. Ou quando ele a pegava olhando para ele, desprezo. No tom de suas palavras contra ele. Sim, ela não se dirigia mais a ele, e sim contra ele. Ela tinha se tornado uma sombra, curvada, carregada, aquele tipo de pessoa que só de sentar perto de você, faz seu corpo se arrepiar como em um mau presságio.
                E o mau presságio era a morte. Ela o odiava com todas as fibras de seu ser. Ela o queria morto. Ele sentia isso como se soubesse de verdade. Como se ela o tivesse ameaçado com palavras nocivas e cruéis... não, ainda pior: como se o tivesse jurado de morte. E essa jura implícita e quase sutil era o que o deixava apavorado. Era mais que o desconforto de viver e dividir a casa com alguém que obviamente não o queria ali; era o temor por sua vida. Ele acreditava estar em constante perigo. Por isso seu comportamento praticamente furtivo. As portas trancadas. Ele queria sobreviver. Queria escapar. Precisava continuar vivo.
                E não podia dividir isso com mais ninguém. Tachariam-o de louco, com certeza. Como explicar que aquela senhora soturna, mas de comportamento respeitável, estava planejando matá-lo? A convivência externa, sempre breve, com certeza não era a mais confortável e agradável para as outras pessoas, mas também não era do tipo perigosa. Olhá-la e considerá-la uma ameaça mortal parecia de fato loucura e descontrole. Até mesmo uma piada de mal-gosto. Mas ele sabia mais. Sua presença era mais que inconveniente; era fatal. Seu comportamento para com ele, por vezes, ultrapassava as agressões verbais e a frialdade do desafeto. Tornava-se agressiva. Sua voz adquiria tons de descontrole, flertando com uma agressão física eminente. Suas pausas e seu silêncio pareciam prepará-la para algo pior. Assim como ele estava quase transbordando de terror, ela estava prestes a transbordar de ódio. Nada bom poderia surgir dali. Ele tinha que escapar. Imediatamente.
                Levantou da cama decido, apesar de estar tremendo e dominado por um horror maior que ele mesmo. Era o comportamento de um animal acossado, lutando para fugir de uma armadilha dolorosa, olhando diretamente para os olhos sem piedade do caçador.
                Ela estava sentada no sofá da sala, os olhos daquele jeito sombrio, perdidos, desconcentrados, mortos. A sala vibrava apenas com as luzes do televisor. Acendeu as luzes e reunindo forças que só um sobrevivente consegue, começou a falar.
                _ Precisamos conversar.
O pescoço se moveu lentamente da televisão para ele. Mediu-o de cima a baixo, o desprezo crescendo em seu rosto, dando-lhe um esgar praticamente demoníaco e quase intolerável de observar. Ele não desviou o olhar.
_ O que pode ser tão importante para você ter coragem de sair de sua pequena cova?
Seu tom era ácido, como sempre. Ela estava, enfim, deixando bem claro que sabia estar conversando com um velho pateticamente em pânico crônico. Parecia, de uma forma doentia, apreciar esse conhecimento.
_ É muito importante.
_ Vindo de você, acho difícil acreditar.
A ênfase em você o deixou profundamente nauseado. Queria sair correndo. Devia fugir, porque mesmo ele queria deixar as coisas em pratos limpos para seu algoz? Talvez porque aquela criatura um dia fora alguém que ele amara. Por respeito a um passado morto e enterrado, que parecia ter acontecido a milhões de anos? Talvez aquela conversa fosse uma estupidez sem tamanho e o preço dela fosse mais alto do que ele pudesse pagar.
Em um reflexo rápido e primordial, ele virou as costas e apressou-se em direção a sua “pequena cova”. Não teve tempo de ver o que aquele gesto impulsivo causara naquela harpia, e nem queria ter que encará-la. Para o inferno com a consideração; sua esposa estava morta há um bom tempo.
Rapidamente, tirou a mala de viagem grande e surrada debaixo da cama e abriu os armários com violência. Começou a tirar as roupas de forma desordenada e socá-las no fundo da mala, mas logo desistiu. Correu para a escrivaninha e começou a tirar coisas de muita importância, coisas que simplesmente não poderia deixar para trás. Perdeu um tempo maior com elas, mas só porque não tinha a menor intenção de voltar. Nunca mais por os pés naquele lugar que um dia chamara de lar, doce lar.
Foi quando ela irrompeu pela porta. O barulho o fez virar e encará-la. E só não gritou porque um vestígio de autocontrole ainda circula por seu corpo.
Parecia um monstro, os olhos inflamados de ódio e não havia outra palavra para descrever o que ele testemunhava. Estava encurralado outra vez. Sentiu que poderia chorar de medo, puro medo, ao primeiro grito inumano que saísse da boca contorcida daquela mulher.
_ O que demônio você está fazendo?
Era pior que um grito. O tom baixo e esgarçado de sua voz era... do além.
_ Indo embora. Preciso ir embora!
_ Do nada?!
_ Do nada, não. Eu... preciso ir! Não posso mais viver aqui, em lugar nenhum debaixo do mesmo teto que você!
_ Ficou gagá, seu estúpido pedaço de merda? Quer que eu chame um maldito médico? Ou melhor, chamar um hospício e te jogar lá para sempre?
_ Até um hospício seria melhor que viver com você! O inferno parece até um lugar acolhedor!
Arrependeu-se muito daquelas palavras. Ele também não era assim. Não era um grosso, não queria feri-la de nenhuma forma. Mas era tanto acumulado, perdera o controle. O medo tomara posse de seu corpo por inteiro. E também de suas palavras e atitudes. Contudo, estava profundamente chateado. Essa era aquela parte que há minutos queria ter uma conversa, na medida do possível, saudável com aquele monstro flamejando de raiva que bloqueava a única saída do quarto.
_ Crise da meia idade? Não seja ridículo! Está comendo alguma vadia por aí? Ah, não, você é muito nojento e pobre para isso!
Sua risada rouca o arrepiou. Tinha urgência. Contornou a cama e recomeçou a jogar roupas de qualquer forma na mala.
_ Só me deixe ir, pode ser? Não quero transformar essa situação em uma coisa pior.
Tipo, você acabar me matando de fato.
_ Não pode ser coisa nenhuma! Quarenta anos comigo e você vai sair na calada da noite de casa?  O que eu vou dizer para os vizinhos? Que meu marido é um velho coroca filho da puta?
_ Diga o que lhe der na telha. Pode me xingar de todos os jeitos. Se você quiser, saio da cidade! Nunca mais dou as caras!
_ E me deixar morrer de fome? Depois de todos esses anos a idiota aqui limpando o chão onde você pisa? Cozinhando e te deixando bem alimentado? Olha como você está gordo! Mal é que você não comia! Criando as porcarias de seus filhos? Quem você acha que é?
UM VELHO APAVORADO!
_ Covarde.
_ Como queira. Não tiro sua razão de forma alguma. Estou errado. Mais do que qualquer coisa. Nada me dá o direito de fazer o que estou fazendo. Mas... eu preciso ir.
_ Vá para o inferno, seu maldito!
Ela bateu a porta e ele pode ouvir seus passos quase afundando o chão. Fechando os olhos, ele inspirou e inspirou várias vezes. Sentiu o corpo quase assentar. Abriu novamente os olhos e continuou apressadamente a pegar coisas pelo quarto. Quinze minutos depois, deu uma olhada pelos cantos e tentou se certificar de que tinha pegado tudo que realmente precisava. Não se sentia covarde. Sentia-se a poucos passos da liberdade. De uma coisa que ele recordava vagamente do que era.
Paz de espírito.
Poucos passos. Poucos minutos. Respirar fundo, manter o controle. Ele só precisava sair da casa.  Depois poderia dormir tranquilamente pela primeira vez em cinco anos. Sem insônia, sem olhar no retrovisor do carro. Sem se esgueirar pela casa. Sem se assustar com barulhos bobos. Sem medo. Era o que ele mais desejava no mundo.
Uma batida na porta.
Duas.
Três.
_ O que foi?
Porque ela não escancarava a porta e o alvejava com mais palavras? Porque ela tinha desistido tão fácil? Para ela, meia dúzia de ofensas realmente tinha sido muito pouco. Será que ele estava mesmo perdendo o juízo e exagerando? Será que ela não estaria se sentindo tão assustada e vulnerável como ele e a única forma de se proteger foi com toda a hostilidade que demonstrara? Será que ela não queria perdê-lo e só tinha reagido de maneira diferente da dele?
Quatro.
_ Abra, quero conversar de verdade. Sem desrespeito.
Não.
Aquele tom em sua voz. Era ruim. Era zombeteiro.
Era um mau presságio.
_ Abra, por favor.
Não.
Estava petrificado de pânico. Não podia se mexer, não queria se mexer.
Um animal em uma armadilha.
Tremia, sentia um suor gelado escorrer lentamente pela sua testa.
_ En... en...
Sua voz se recusava a sair. Não queria morrer. Não queria de forma alguma.
_ Entra.
A porta se abriu lentamente. O corredor atrás dela escuro. A casa estava mergulhada em silêncio perturbador. Até o televisor estava desligado. Sua expressão era neutra, mas seu olhar era mal, uma sombra escura se formava embaixo dos olhos. Ela deu dois passos em direção ao centro do quarto. Ele quis pedir para ela não se aproximar mais, contudo, estava tão tenso, que temeu esquecer-se de respirar.
Ela olhou em volta, o quarto em um estado de caos.
_ Você vai mesmo.
_ Sim.
_ Faz uma última coisa por mim?
_ O que?
_ Lembra daquele livro que te dei, há muito? Aquele que você sempre deixa aí em seu criado mudo?
Ela apontou, seu dedo era quase uma garra. Com o canto dos olhos, procurou o criado mudo.
_ Eu...
_ Por nós. Faz esse último favor e não te incomodo mais. Vá viver sua vida, como queira. Mas deixa-me esta última recordação.
Conflito.
Não confiava nela.
Naquilo.
Mas ele tinha sido cruel com a pessoa com quem vivera durante quarenta anos. Muitos deles tinham sido bons. Ele a estava deixando sem mais explicações, de forma covarde e desleal. Ela tinha gritado seus bons e velhos insultos, mas eles eram velhos e cansados. A vida não afeta a todos da mesma forma. O tempo lhe trouxera aquele medo irracional. A ela, o amargor. Poderia culpá-la? Ele só queria sair dali. Não custava um último gesto de compreensão.
Virou-se e se inclinou para abrir a gaveta.
A próxima coisa que sentiu foi a violência do golpe no meio das costas. Era algo grande e afiado, cortando sua carne como se fosse manteiga. A dor foi indescritível, acompanhada de um choque tamanho que não conseguiu sequer articular um grito, um pedido de socorro. Sentiu o que parecia ser uma lâmina saindo de corpo e segundos depois, entrando novamente em outro lugar. A dor o cegou de pronto, não conseguia mais respirar. O processo se repetiu mais umas quatro vezes, sem perder a intensidade, sem perder a força insana.
Deixou o corpo desabar de bruços no chão. Sentia a vida indo embora, como se ela fosse fluida, palpável, não mais um mero conceito. Buscava o ar, que não vinha. Só conseguia enxergar pontos pretos e nebulosidade. A dor cessara, talvez fosse tamanha que o corpo desistiu de traduzi-la. Sim, seu corpo estava desistindo de muitas coisas, principalmente de se manter vivo.
Sentiu o pé de sua mulher, um dia amada, aquela mesma que estava linda de tirar o fôlego no casamento deles, virá-lo. Ela queria ainda olhá-lo nos olhos. Mas ele não sentia mais medo ou indignação. Esteve se preparando e tentando evitar aquele momento horrendo. De olhar nos olhos dela uma última vez e ver mais que maldade, mais que ódio. Ver a morte. Tão personificada como a vida saindo dele.
_ Vá embora, vá para sempre, seu velho maldito.
Os olhos se fecharam e a última coisa que sentiu foi que agora o medo acabou.
Não tinha mais que fugir.

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